Lisnave sem ambiente

Antes de desaguar no atlântico, o Rio Tejo avoluma-se naquele que é o maior estuário da Europa Ocidental. Actualmente, rodeada pela área metropolitana de Lisboa, esta área poderia ser uma ilha de beleza e vida natural localizada no coração da maior malha urbana do país, todavia ao longo da última metade do século XX este cenário, outrora palpável, tornou-se miragem.
Do estuário, diziam os antigos que era composto de duas partes de água e uma de peixe, e foi esta grande riqueza natural que fomentou a colonização das suas margens pelos vários povos que, ao longo dos tempos, foram descobrindo a “ocidental praia lusitana”.
As muitas espécies de peixe que usam o estuário para a reprodução e as dezenas de milhares de aves aquáticas que o cruzam a cada Inverno são apenas alguns dos impressionantes atributos naturais que fazem deste estuário a mais importante zona húmida portuguesa, contudo, todos este atributos naturais não foram suficientes para impedir, a partir de finais dos anos 60, a asfixia química, urbanística e populacional.
É sobre este contexto que importa referir vários aspectos relacionados com a tutela jurídica do ambiente.

Como se sabe foi com a época contestatária dos anos 60 (movimento hippie, Maio de 68, etc.) que surgiu a questão ambiental, politizada neste período. Até então, era meramente uma questão cívica e individual, de natureza pré-política. Todavia, o nosso país estava a anos luz deste debate, e as preocupações governamentais, para além do adormecimento da consciência cívica dos portugueses, estavam focadas no forte crescimento económico do país, que teve como consequência fluxos migratórios assombros - foi a época determinante do êxodo rural português.
Almada, até então, era habitada por cerca de 20.000 pessoas (actualmente é um cidade com 150.000 habitantes) e assistia-se à implementação e crescimento de indústrias por toda a zona ribeirinha do concelho. Por sua vez esta era a zona de eleição para o recreio das classes mais pobres e era comum, ao contrário do que se possa pensar, preferirem veranear nas praias ribeirinhas da Mutela, freguesia da Cova da Piedade (fig.1), relegando para um segundo plano as praias de mar da Costa da Caparica. Naquelas praias era possível assistir a desfiles de golfinhos do Tejo, pescar safios, linguados e outras variedades de peixes, apanhar caranguejos e outros crustáceos. Eram locais aprazíveis e de enorme beleza natural. Assistia-se a um equilíbrio entre o ecossistema e a comunidade local.
Este quadro depressa se alterou com a construção dos estaleiros navais da Lisnave na zona do mar da palha (fig.2), onde anteriormente se localizava a praia da Mutela. Consequentemente tudo mudou… A praia deixou de existir e a pesca artesanal desapareceu quase por completo, tudo por consequência das descargas químicas e das lavagens dos tanques dos petroleiros (ainda permanece na memória de muitos almadenses as manchas brilhantes que permaneciam por largos dias nas imediações daquele que foi o maior empreendimento de indústria naval de Portugal). À época, a decisão que autorizou a sua construção mereceu o aplauso da população – era raro não ter nenhum familiar ou não conhecer-se ninguém que não fosse operário da Lisnave.
Todavia, hoje, volvidos já 10 anos desde a falência deste empreendimento, várias conclusões terão de ser retiradas:
- nos anos 60, com a construção do estaleiro, tapou-se os olhos à questão ambiental. A laboração desta actividade poluente não sofreu quaisquer restrições. Não se conciliaram interesses antagónicos. Não esteve presente nos objectivos das entidades públicas que autorizaram o empreendimento, qualquer ideia de prevenção, não se evitaram lesões do meio ambiente, e nem sequer perante um risco real a prevenção em sentido restrito foi atendida;
- não se articulou a prevenção e a protecção do ambiente com outros direitos e interesses tendentes ao desenvolvimento económico. Apesar de ter surgido uma empresa de enormes proporções em Almada, os 30 anos em que a sua actividade se desenvolveu determinaram a eliminação irreversível de todo um ecossistema (golfinhos no Tejo são memória) e privaram as populações daquilo que hoje são considerados direitos constitucionais (direito ao ambiente e qualidade de vida, ex vi do art. 66.º CRP), estando, actualmente, os estaleiros vetados ao abandono constituindo uma enorme área morta de uma cidade esmagada pelo betão (fig.3). Não houve, nem racionalidade no aproveitamento dos recursos, nem solidariedade intergeracional ;
- a reacção das autoridades foi tardia, veja-se que a criação da Reserva Natural do Estuário do Tejo surge já passados 15 anos do estabelecimento da Lisnave. Procurou-se apenas intervir ambientalmente sobre as consequências e não sobre a fonte o que constitui uma fuga ao princípio da correcção na fonte.
Por tudo isto, pode concluir-se que Almada possui uma enorme franja populacional de "pescadores de chalupa em potência" que poderiam demandar todos aqueles que, pela criação de um risco, lesaram o direito fundamental ao ambiente.

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