As relações do homem com o animal e a natureza na civilização ocidental têm sido regidas pelo domínio. A cultura popular deita raízes no passado e o meio ambiente (fauna e flora) são dizimados em alta velocidade, sendo que grande parte da população não protege ou interessa-se pela protecção da biodiversidade.
O caso que trago hoje “ à praça” tem a ver com a exploração indevida de um animal numa exposição cultural.
No ano de 2007, Guillermo Vargas Habacuc, um “suposto” artista, colheu um cão abandonado da rua, atou-o a uma corda curtíssima na parede de uma galeria de arte e ali o deixou, a morrer de fome e sede.
Durante vários dias, tanto o autor de semelhante crueldade, como os visitantes da galeria de arte (que foram “proibidos” de o alimentarem) presenciaram impassíveis à agonia do pobre animal. Até que morreu, inanimado, seguramente depois de ter passado por um doloroso, absurdo e incompreensível calvário.
Para acentuar toda esta “triste história” a prestigiada Bienal Centro Americana de Arte decidiu, incompreensivelmente, que a selvajaria perpetrada por este senhor costa – riquenho deveria ser premiada e qualificada como arte, tendo inclusive sido convidado a repetir a sua cruel acção na dita Bienal 2008 a realizar nas Honduras.
Sem qualquer conhecimento da legislação hondurenha sobre a defesa dos animais, penso que seria todavia interessante resolver este problema jurídico à luz das legislações internacionais, como por exemplo a DUDA (Declaração Universal dos Direitos dos Animais), bem como, salientar os mecanismos legais que se aplicam no âmbito do Direito Português.
Há muito foi superado o entendimento que os animais são coisas sem nenhuma protecção jurídica. A protecção da fauna e da flora vem sendo garantida por diversos instrumentos legislativos. Aliás, na Alemanha o BGB já trata os animais como “animais”, visto que, no seu art.º 90 – A diz claramente que não são coisas, fazendo porém, uma diferença de grau para com os seres humanos, utilizando a expressão “animais não humanos”.
A UNESCO, em 27-01-1978, em Bruxelas, Bélgica, editou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Mais recentemente realizou-se em Cuernavaca, Estado de Morelos, México, em 19-07-1997, o Primeiro Encontro Nacional pelos Direitos dos Seres Vivos, uma verdadeira tomada de posição pela dor e sofrimento que os seres humanos impõe aos animais.
No caso trazido à baila constata-se, rapidamente, a violação de uma série de princípios estabelecidos na DUDA, concretamente os arts. 2º e 3º.
Neles exaltam-se: o respeito que os animais merecem; a conduta que o homem não deve ter para com os animais, nomeadamente, não exterminar ou explorar abusivamente os direitos destes; o ser humano deve também colocar a sua consciência ao serviço dos outros animais; e finalmente, o direito do animal à consideração, à cura, à protecção do homem, o que implica a não existência de maus tratos e a não submissão a actos cruéis.
Convém referir também que se a morte do animal é necessária deve ser instantânea, sem dor nem angústia.
Ou seja, podemos de forma irónica afirmar que o senhor Habacuc atingiu a perfeição na aplicação “a contrario” dos arts. 2º e 3º da DUDA.
Num outro prisma, e analisando a questão como se esta tivesse ocorrido no nosso país, quais os mecanismos aplicados pelo Direito Português?
Em primeiro lugar, de referir que a Constituição da República Portuguesa no seu art.º 66, nº 1 refere que é obrigação do ser humano defender o ambiente, situação que definitivamente não se verificou.
Graças a Deus e ao legislador, Portugal é um país fértil em produção legislativa, nem sempre de grande qualidade (é verdade!), mas relativamente ao caso concreto essa qualidade legislativa é bastante aceitável.
Assim sendo, começo por fazer uma breve menção ao art.º 16, nº1 da Lei n.º 11/87 (Lei de Bases do Ambiente) que ressalta o facto de toda a fauna dever ser protegida por legislação especial que promova a salvaguarda da conservação e exploração das espécies sobre as quais recaiam interesses científicos, económicos ou sociais, assim como, garanta o seu potencial genético e os habitats indispensáveis à sua sobrevivência.
Posteriormente, em 13 de Abril de 1993 o Presidente da República Mário Soares promulgou o D.L 13/93 que aprova a Convenção Europeia para a protecção dos animais de companhia cujo preâmbulo é semelhante ao da DUDA.
Ora este decreto trouxe definições muito importantes para a resolução do caso concreto, como por exemplo, o conceito de animal vadio ou errante no art.º 1, n.º5. Este diploma foi alterado pelo D.L 314/2003 de 17 de Dezembro onde consta essa mesma definição (art.º2, alínea n)).
Nesse sentido, a partir do momento em que o “suposto” artista o “adopta” e se ocupa do cão deve ser responsável pela sua saúde e pelo seu bem-estar, nos termos do art.º 3, n.º1, alínea b) e do art.º 4, n.º1 e n.º2 do D.L 314/2003.
Caso a exposição ocorresse numa galeria em Portugal, o senhor Guillermo Vargas Habacuc estaria sujeito ao estabelecimento de normas sanitárias emitidas pela DGV (Direcção – Geral de Veterinária) e essa exposição só se daria com a autorização da DRA (Direcção Regional de Agricultura).
Segundo o art.º 4, n.º4 alínea a) do D.L 314/2003 o cão só estaria apto a participar na exposição se estivesse identificado no SICAFE (Sistema de Identificação de Caninos e Felinos) e, ao mesmo tempo, tivesse o seu boletim de vacinas em dia.
Por outro lado, o art.º4, n.º 5 e n.º 6 do referido diploma mencionam o processo de nomeação e as competências dos médicos veterinários da exposição.
Caso a exposição não seja realizada com a autorização da DRA ou algum dos requisitos do art.º4 do D.L 314/2003 não esteja preenchido, terá o Director – Geral da DGV (art.º14,n.º3) poder para aplicar uma coima que variaria entre os € 50 e os €3740, uma vez que, na situação jurídica em questão, tratar-se-ia de um agente singular.
Quais as conclusões a tirar desta situação insólita?
Uma primeira ilação, se este caso se inserisse no âmbito do direito português haveria claramente um problema de conflito de direitos, ou seja, um frente a frente entre o direito à cultura (art.º73 da C.R.P) e um direito ao respeito pela integridade, pela vida dos animais.
Prevaleceria o direito à cultura mas dentro dos trâmites de outro importante princípio constitucional, o princípio da proporcionalidade na sua vertente da adequação e idoneidade de meios para atingir os fins.
Essa situação no caso prático em questão nunca se verificou. O cão teria direito aos cuidados higiénicos que a lei nacional, a convenção europeia e DUDA lhe garantem.
Uma outra inferência e esta num tom mais crítico, resume-se ao facto de a coima aplicada ao agente infractor no D.L 314/2003 ser a meu ver demasiado leve. Porque não interpretar esta situação como dolo eventual, na medida em que, na minha opinião e de acordo com a teoria do consentimento ou da aceitação derivada da fórmula positiva de Franck, o agente previu um certo resultado ( a morte do cão), consentiu e aceitou esse resultado e não fez absolutamente nada para o remediar, apenas tendo como fins a cultura e o lucro? Seria necessário fazer uma interpretação casuística quanto à intensidade do dolo de acordo com o art.º71, n.º2 do Código Penal.

Como diria o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham:

“Chegará o dia em que o restante da criação vai adquirir aqueles direitos que nunca poderiam ter sido tirados deles senão pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação dos sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou talvez a capacidade de falar? Mas, para lá de toda a comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebé de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria o facto? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim se são passíveis de sofrimento.”

A boa natureza dos animais é a força do corpo e a dos homens a excelência do carácter. Talvez seja ridículo quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles somos discípulos em coisas importantes, como o tecer da aranha ou o cantar do rouxinol.
Embora os direitos dos animais, em muitas regiões do planeta, tenham permanecido por longo tempo vinculados exclusivamente ao comportamento ético e moral da humanidade, alguns países, gradativamente, iniciaram a positivação de leis e regras, procurando uma maior efectivação dos direitos dos animais. Todavia, essa positivação parece não ter chegado à América Central.
Para terminar gostaria de deixar duas breves notas: em primeiro lugar, destacar o papel das organizações não governamentais como o Greenpeace e o Movimento pelos Direitos dos Animais que no caso em questão desempenhou um papel de tremenda relevância, já que colocaram na Internet uma petição para reivindicar esta injustiça.
Urge alertar a comunidade, relembrando o mito do “bom selvagem” de Jean Jacques Rosseau que idealizava uma relação individual com o meio ambiente enquanto realidade pré – política, que o respeito e a compaixão dos homens não trará prejuízo algum à humanidade; pelo contrário, somente contribuirá para a evolução da espécie humana. Transformará as pessoas em seres com maior sensibilidade ao sofrimento alheio, tornando-as assim bem mais solidárias. Da inclusão dos animais no âmbito das considerações morais dos homens nenhuma má consequência advém, mas, em contrapartida, pelo menos uma boa consequência acarretará: ampliar o espectro da moralidade humana.

0 comentários:


 

Copyright 2006| Blogger Templates by GeckoandFly modified and converted to Blogger Beta by Blogcrowds.
No part of the content or the blog may be reproduced without prior written permission.