O Provedor de Justiça, Defensor do Ambiente


Como já tive oportunidade de mencionar a propósito do tratamento da matéria do Direito Penal do Ambiente, cabe, de facto, aos poderes públicos - à Administração -, a primazia na defesa dos princípios e na tutela da protecção do Ambiente.

Sendo a problemática do Direito do Ambiente de sensível natureza, parece legítima a exigência especial de uma actuação recta, firme e ponderada da Administração no que a ela diz respeito.

Para além das perspectivas já mencionadas e brevemente tratadas (a Penal, predominantemente repressiva e a Administrativa, essencialmente ordenadora), cabe dar relevância a uma outra via de defesa ambiental, raras vezes mencionada - a via mediadora e persuasiva.

Neste âmbito, o Provedor de Justiça, ao “prosseguir a sua missão constitucional de promover a reparação das ilegalidades e injustiças que observa na actividade dos poderes públicos” (in Nota de Apresentação, O Provedor de Justiça Defensor do Ambiente, 2000), funcionará como um verdadeiro defensor do Ambiente, constituindo um elo de ligação entre os cidadãos e o poder. A sua acção estende-se a todo o campo das acções e omissões dos poderes públicos que desrespeitam a lei e os Princípios constitucionais. Através da intervenção do Provedor de Justiça é possível fazer vingar as preocupações de uma população cada vez mais consciente dos seus direitos, preocupações essas expressas através de queixas e petições.

Seguindo a letra da Lei n.º9/91 de 9 de Abril, o Provedor de Justiça define-se, nos termos da Constituição, como “um órgão do Estado eleito pela Assembleia da República, que tem por função principal a defesa e promoção dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos” (art. 1º/ 1), “gozando de total independência no exercício das suas funções” (art. 1º/ 2).

Não tem poderes de decisão. Não manda, não impõe, não constrange os poderes públicos (é prova disso mesmo o caso da empresa RASIOESTE que desvalorizou, em 2001, a recomendação que o Provedor de Justiça, Nascimento Rodrigues, fez ao então Ministro do Ambiente José Sócrates, relativamente ao Aterro Sanitário do Oeste).

A sua actuação permite-lhe, para além da persuasão pela força da razão e boa fundamentação, evidenciar possíveis vulnerabilidades na actividade administrativa e legislativa do ambiente.

Nas palavras de José Menéres Pimentel, Provedor de Justiça de 1992 a 2000, no plano das “complexas relações tripolares entre o poluidor, os lesados e a Administração Pública, tem procurado o Provedor de Justiça, com as suas intervenções, constituir um factor de reequilíbrio, em especial, perante situações distantes das páginas dos jornais ou das imagens televisivas. Neste sentido, cumpre-lhe (re)inventar o direito, confrontá-lo com soluções indiscutidas e, aqui e ali, verter as suas preocupações em iniciativas junto ao legislador, a fim de ver aperfeiçoada a legislação ou a interpretação dos seus preceitos.”.

De forma a melhor compreender o tipo de actuações possíveis nas mais diversas áreas, como o ordenamento do território, as pressões industriais e urbanísticas, o problema do ruído, das águas, das reservas e parques naturais, da política nacional de resíduos e também na das avaliações de impacto ambiental, transcrevemos, de seguida, dois exemplos de Recomendações do Provedor de Justiça em defesa do ambiente:

Ar

Exmo. Senhor

Presidente da Câmara Municipal de Lisboa

R-3157/94

Rec. n.º 91/A/95

1995.09.06

I

Exposição de Motivos

1. A este Órgão do Estado foi dirigida queixa sobre a grave situação de insalubridade causada pela existência de vários felídeos no 1o andar esquerdo, do prédio correspondente ao n.o..., da Rua..., em Lisboa.

2. No decurso dos procedimentos instrutórios a que tal queixa deu origem, tive conhecimento de que constatada a grave situação de ausência de condições de higiene e limpeza, bem assim como os riscos para a saúde e tranquilidade dos restantes moradores de tal prédio, determinou essa Câmara, por duas vezes, a remoção dos animais, nos termos previstos pelo art.o 10o, n.o 2, do Decreto-Lei n.o 317/85, de 17 de Agosto, decisões de que foi a respectiva proprietária notificada, de acordo com o n.o 3 daquele artigo, em 1993.06.07 e 1994.10.27.

3. Verificando-se o incumprimento pela destinatária, da primeira ordem de remoção, indicia tal comportamento responsabilidade criminal por crime de desobediência (art.o 388o do Código Penal), tendo sido instaurado o competente processo, o qual veio a ser arquivado por despacho de 1993.11.09, em virtude da falta de apreciação do recurso interposto da decisão camarária (art.o 10o, n.os 3 a 5, do Decreto-Lei n.o 317/85, de 2 de Agosto).

4. Não tendo a particular cumprido voluntariamente a imposição contida na notificação que lhe foi dirigida em 27 de Outubro do ano transacto, foi instaurado novo procedimento criminal e remetidos os correspondentes autos, em 17 de Fevereiro p.p., à Polícia Municipal para efeitos de promoção das diligências de inquérito, nos termos previstos pelo art.o 270o do Código de Processo Penal.

5. Do exposto resulta que tem a Câmara Municipal de Lisboa utilizado os meios ao seu alcance para induzir a destinatária da ordem de remoção ao respectivo cumprimento voluntário. De facto, a instauração e prossecução do procedimento criminal em virtude de desobediência à ordem em causa, consiste numa medida de compulsão psicológica significativa para a sua execução e cumprimento (OLIVEIRA, Mário Esteves e Outros, Código do Procedimento Administrativo, comentado, Vol II, Coimbra 1985, pág. 230).

6. Todavia, não é uma medida de execução do acto administrativo e, por tal razão, não está apta a realizar os respectivos efeitos, quais sejam: a remoção efectiva dos animais e, em consequência, a restauração das condições de salubridade e higiene do imóvel, conforto e tranquilidade para os respectivos moradores.

7. Sem pretender questionar a margem de livre apreciação de que a Administração dispõe na tomada da decisão de execução coactiva de um certo acto, a qual dependerá de um juízo que pressuponha a necessária ponderação relativa dos prejuízos que para o interesse público advenham da sua não execução, da ausência de prejuízo ou lesão de direitos ou interesses legítimos de terceiros e do sacrifício imposto ao particular, certo é que, no caso em análise, a inexecução da ordem de remoção provoca a contínua e reiterada lesão do direito dos vizinhos a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado, pelas manifestas condições de insalubridade existentes no prédio em questão.

8. Para tal juízo de ponderação relativa parece apontar o n.o 7, do art.o 10o, do Decreto-Lei n.o 317/85, de 2 de Agosto, ao estatuir que o juiz apenas pode conceder efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão camarária que ordena a remoção dos animais se, em função da prova oferecida e dos pareceres da autoridade sanitária veterinária e do médico veterinário assistente, concluir que o decurso do prazo para a emissão da sentença, sem execução imediata da decisão camarária, não implicará a possibilidade de riscos apreciáveis na salubridade e tranquilidade de quaisquer pessoas.

9. Realça esta norma, quer a característica que, em geral, já decorre do art.o 149.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Procedimento Administrativo, quanto à executoriedade dos actos administrativos, quer o facto de a execução imediata da decisão camarária de remoção apenas poder ser evitada com base num juízo de probabilidade da não ocorrência de riscos para a salubridade e tranquilidade das pessoas susceptíveis de virem a ser afectadas com a manutenção da situação, o que constituindo o único fundamento para a atribuição de carácter suspensivo ao recurso, deverá nortear a decisão de proceder à execução coactiva do acto.

10. "A contrario", verificando-se na presente situação, não apenas riscos de lesão de tais bens jurídicos, mas a efectiva produção de danos, cabe a esse órgão autárquico a promoção e realização dos actos e operações materiais que obstem à manutenção da situação que os gera.

11. Reconhecida a verificação de factos dos quais a lei faz derivar certas consequências, "nasce para o seu autor a vinculação de emitir um comando com um certo conteúdo" (CORREIA, José Manuel Sérvulo, Noções de Direito Administrativo, pág. 458)

II

Conclusões

Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (art.o 23o, n.o 1, da CRP), entendo dever fazer uso do poder que me atribuído pelo art.o 20o, n.o 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e, como tal,

Recomendo

1o Que promova a Câmara Municipal de Lisboa, nos termos do disposto no art.o 157o, n.o 2, do Código do Procedimento Administrativo, a execução imediata da decisão camarária que ordenou a remoção dos felídeos existentes na Rua..., n.o..., por razões da insalubridade provocada por esses animais, atendendo, designadamente, a que a não execução imediata de tal decisão acarreta riscos significativos para a saúde e tranquilidade da vizinhança.

2o Para tal fim, seja notificada a proprietária dos animais, nos termos e para os efeitos do disposto no art.o 152o, do Código do Procedimento Administrativo, da decisão de se proceder à execução da ordem de remoção e com indicação dos termos em que a mesma irá ser realizada (art.o 157o, n.o 2, do Código do Procedimento Administrativo).

Recomendação acatada

Água

Ao

Exmo. Senhor

Presidente da Câmara Municipal

de Santa Maria da Feira

R-2320/93

Rec. n.º 65/A/97

1997.09.02

I

Exposição de Motivos

1.º

Da Instrução

1. No exercício do direito consagrado pelo art. 3.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, foi apresentada na Provedoria de Justiça queixa sobre alegada contaminação de poços de água afecta ao consumo doméstico, no lugar de Mirante, Canedo, em Santa Maria da Feira.

2. Analisada e apreciada toda a informação prestada pela Câmara Municipal e pela Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Norte, em resposta às diligências instrutórias promovidas pela Provedoria de Justiça, consultada a documentação que integra o pertinente processo camarário em acção inspectiva desenvolvida na Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, pude concluir pela verificação dos seguintes factos e circunstâncias:

2.1. Procede o Sr... à exploração de estaleiro no lugar de Mirante, em lote residencial. 2.2.A fiscalização municipal, em deslocação realizada com base em queixas que lhe foram dirigidas acerca da contaminação dos poços circundantes, em virtude do aproveitamento do terreno para a prestação de assistência mecânica pelo munícipe, observou serem os trabalhos prosseguidos no local, entre os quais, a lubrificação de engrenagens e a substituição de óleos utilizados, susceptíveis de acarretar a afectação da toalha freática que abastece os poços do aglomerado.

2.3. Em 11-5-1994, a Câmara Municipal notificou o munícipe a fim de que o mesmo removesse a maquinaria sita no terreno, bem como os desperdícios e sucatas ali depositados, e assegurasse a limpeza da área ocupada com remoção de desperdícios e sucatas.

2.4. Deliberou a Câmara Municipal, tendo em vista a resolução do problema, em 29-5-1995, a cedência a título oneroso de 4 lotes sitos na Zona Industrial de Vila Maior, em Canedo, com a área de 4.000 m2, a favor do Sr... o que lhe permitiria transferir as instalações. Em 20-7-1995, foi celebrado contrato promessa de compra e venda do referido lote, propriedade da Câmara Municipal, entre este Órgão autárquico e o Sr... e sua mulher, Sra... Nos termos do referido contrato, comprometeu-se o Sr..., conjuntamente com a sua mulher, a comprar os lotes nºs 4, 5, 6, 7 e 8, sitos na Zona Industrial de Vila Maior, bem como a "proceder ao encerramento definitivo das instalações que possuem no lugar de Mirante, da freguesia de Canedo, o que deverá ocorrer até ao dia 30 de Setembro do corrente ano." Dispõe a cláusula 3.1. do contrato em apreço "o encerramento do estaleiro referido na cláusula anterior compreende a transferência de toda a instalação incluindo máquinas e utensílios, para os lotes da Zona Industrial de Vila Maior, aqui prometidos ceder pela primeira outorgante para este efeito". A cláusula 3.2. prescreve "efectuada a transferência, devem os segundos outorgantes, naquele prazo, proceder à limpeza do terreno, removendo os destroços resultantes dessa operação, deixando-o, a final, livre de coisas e bens". Mais se consigna que, em caso de incumprimento do contrato por qualquer dos contraentes, poderão os contraentes não faltosos, exercer o direito de resolução, nos termos previstos no art. 442.o do Código Civil, ou, em alternativa, requerer a execução específica do contrato (ponto 5).

2.5. Em 18.12.1995, a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira informou ter sido inobservado o prazo acordado para transferência das instalações do estaleiro para a zona industrial de Vila Maior. Comunicou aquele Órgão autárquico que o assunto seria discutido em reunião camarária "com vista a tomar posse administrativa do terreno do estaleiro para assim, se proceder ao seu encerramento" e, já em 29.03.1996, que iria diligenciar no sentido de ser suspenso o abastecimento de energia eléctrica.

2.6. Passa a transcrever-se excerto do relato de acção de fiscalização camarária, a qual teve lugar em 4.10.1996: "o terreno assinalado (...) é propriedade do Sr..., estando este a ser utilizado como parque de máquinas industriais, nomeadamente máquinas de terraplanagem, camiões, gruas, betoneiras e outras máquinas ligadas ao ramo de construção civil, que são de sua propriedade, Firma C..., Lda.". Neste local, o proprietário procede à manutenção das referidas máquinas, como por exemplo, mudanças de óleos, lavagens e outros serviços sem possuir condições para tal efeito. O terreno encontra-se implantado numa zona habitacional, não havendo na envolvente este tipo de serviço. O piso encontra-se em terra batida, excepto na zona de coberto que se encontra em cubos de granito, havendo grandes vestígios de resíduos de óleos e outras substâncias provenientes da manutenção das máquinas".

2.7. Nada consta no processo camarário sobre participação de ilícito de mera ordenação social à Direcção Regional da Indústria e Energia competente, por infracção às disposições constantes do Decreto-Lei n.º 88/91, de 23 de Fevereiro, em particular à proibição de depositar ou proceder à descarga de óleos usados ou de resíduos resultantes do seu tratamento com efeitos nocivos para o solo (vd. art. 2.o, n.º 1).

2.8. Em 12/9/1995, a Direcção Regional de Ambiente e dos Recursos Naturais do Norte esclareceu terem os resultados de análises efectuadas relativamente a amostras dos poços pertencentes ao estaleiro do Sr... bem como do poço sito em propriedade do reclamante, a jusante da exploração, pelo Instituto da Água da Região Norte, acusado valores de hidrocarbonetos superiores aos níveis máximos legalmente admitidos (vd. Decreto-Lei n.º 74/90, de 7 de Março). Conclui a Direcção Regional ter o aquífero local sofrido a influência das infiltrações de óleos, em virtude de operações com máquinas e viaturas pesadas desenvolvidas no estaleiro. Subsequentemente, instauraram os serviços regionais, em 26-04-1996, procedimento contra-ordenacional contra o Sr..., em razão de o mesmo proceder à descarga de resíduos sem licença, em infracção ao disposto no artigo 86.o, alínea v) do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro.

2.9. Aos factos inicialmente articulados pelo reclamante, acresce a construção de escritório de apoio no local, sem prévia submissão a licenciamento municipal, nos termos em que o estabelece o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

2.º

Da Apreciação

A procedência da queixa foi reconhecida pela Câmara Municipal, à qual deve ser imputada a omissão de medidas destinadas a repor a legalidade infringida e a salvaguardar os interesses ambientais em presença, contribuindo, assim, não apenas para deixar perpetuar uma situação de ilegalidade verificada, como também para manter um caso de injustiça ambiental, traduzido no aproveitamento indevido de recursos naturais e na produção de prejuízos no ambiente de terceiros, que não colhem quaisquer benefícios da actividade exercida.

II

Conclusões

De acordo com a motivação exposta, devo exercer a faculdade que me é atribuída pelo art. 20, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e, como tal,

Recomendo

A) Que a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira ordene o despejo administrativo das instalações ocupadas pelo Sr..., com fundamento no disposto no artigo 165.o do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44 258, de 31 de Março de 1962, por não ter merecido aprovação municipal a utilização praticada.

B) Que V.Ex.a determine a demolição voluntária da construção efectuada pelo munícipe, sem licenciamento municipal, precisando os trabalhos a realizar e o prazo para início e conclusão dos mesmos, ao abrigo do disposto no artigo 58.o do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e no artigo 6.o, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

C) Que V.Ex.a ordene que, em caso de incumprimento, pelo munícipe, das ordens proferidas, sejam os respectivos actos de execução praticados pelos serviços camarários, ou, em caso de impossibilidade, por terceiro, a expensas do notificado, nos termos previstos no artigo 58.o, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e no artigo 155.o, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 422/91, de 15 de Novembro.

Recomendação acatada

· Outras recomendações sobre o ar: R-3589/94 (1995.06.16), R-1515/96 e R-3349/95 (1998.05.11);

· Outras recomendações sobre a água: R-2593/91 (1998.05.27), R-2410/97 (1999.06.18);

· Recomendações sobre o solo: R-956/94 (1994.12.22), R. 3322/94 (1995.03.29);

· Recomendações sobre Fauna & Flora: R-3436/97 (1998.04.06), R-2570/91 (1997.03.21).

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