O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o direito ao acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva. Dizê-lo é reconhecer que, num Estado de Direito, como a República Portuguesa pretende ser, qualquer direito terá de ser eficazmente protegido. A última e, muito frequentemente, mais importante, “linha de defesa” dos direitos é o acesso aos Tribunais. Este nível de protecção é uma conquista histórica, enraizada nas tradições constitucionais da generalidade dos países.
O artigo 266º nº 2 CRP, ao tratar dos princípios fundamentais que regem a Administração Pública, determina que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei.” Ainda no campo da Administração, o artigo 268º nº 4 postula, numa proclamação de inquestionável relevo, que “é garantida aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas”.
Estes preceitos são concretizados, ao nível da lei processual, nos artigos 2º, do Código de Processo Civil, e 2º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Da sua interpretação conjugada podemos retirar as seguintes conclusões:
-a cada direito deve corresponder uma acção adequada à sua tutela;
-os Tribunais não se podem eximir a proferir uma decisão nos litígios que lhes forem legitimamente apresentados, seja invocando a falta de lei, seja refugiando-se na dificuldade da questão em análise;
-a Administração está vinculada ao princípio da legalidade na prossecução das suas tarefas, entendendo-se legalidade “lato sensu”, como bloco de legalidade;
-os Tribunais têm a competência e o dever de resolução dos litígios que emergirem da actividade da Administração;
O mundo em que nos movemos é cada vez mais complexo, técnica e tecnologicamente evoluído. Isso implica a abertura de novos campos nos quais o espírito e o empreendedorismo humanos se podem mover. Implica da mesma forma o surgimento de novas tarefas para o Estado, maxime, da Administração Pública. O Direito não poderia ficar, e não ficou indiferente, a estas alterações. É por isso que temos hoje ramos do Direito, já definidos, ou ainda em estruturação, que abrangem áreas tão vastas e díspares como o Ambiente, a Genética, a Bioética, os Meios de Comunicação Social, o Ciberespaço, o Ordenamento do Território ou mesmo a ocupação do Espaço.
Todas estas áreas, apesar da sua inerente complexidade, carecem de regulação jurídica. E carecem de uma regulação jurídica que permita, sem violar, evidentemente, o princípio da separação de poderes, aferir da legalidade com que a Administração nelas intervém. Não devemos invocar a “discricionariedade técnica”, ou as dificuldades com que o juiz se possa confrontar na tarefa de descortinar soluções para problemas sobremaneira difíceis, como forma de alargar indiscriminadamente o campo de “liberdade” incontrolada da Administração. Afirmá-lo é abrir a porta a uma “tirania da técnica”, um “santuário” em que os órgãos Administrativos encontrassem acolhimento para escapar aos ditames da Constituição e da lei, negando o Estado de Direito.
Os Tribunais contam, nos dias de hoje, com uma pluralidade de meios técnicos ao seu dispor, e podem recorrer à audição de peritos. Estes permitir-lhe-ão suprir as deficiências no conhecimento técnico dos juízes, de forma a melhor julgarem as questões que lhes forem colocadas. E esta não é, de modo algum, uma novidade histórica. Cremos que a maioria dos Magistrados não terá mais do que meros conhecimentos rudimentares de Engenharia, mas isso não os impede de aferir sobre o preenchimento dos critérios para a responsabilidade, penal ou extra-contratual, de um projectista cuja negligência provoca a queda de um edifício, gerando danos em pessoas e bens. Mais raro será ainda o juiz com formação em Física Quântica ou de Partículas, contudo os Tribunais Norte-Americanos não recusaram apreciar os pedidos de providências cautelares relacionados com os dois aceleradores de partículas, instalados pelo CERN, na Suíça. E muitos outros exemplos poderiam ser citados.
Concordamos por isso, evidentemente, com a Professora Carla Amado Gomes, quando afirma que a incapacidade funcional do juiz não deverá afastar “aquelas decisões [Administrativas, em matéria Ambiental] da susceptibilidade de revisão judicial”. Já não podemos aderir totalmente, contudo, quando se parece sugerir que, quando esta incapacidade funcional do juiz não possa ser integralmente suprida, as decisões poderiam escapar a este controlo.
Da mesma forma, não nos parece que as questões Ambientais levantem problemas técnicos tão mais complexos que outras que são já submetidas ao juízo do poder judicial. Poderão sim exigir a colaboração deste com ciências auxiliares, não habitualmente convocadas para estarem presentes numa sala de audiências… Ainda que a dúvida persista, o juiz deve decidir, na medida das suas possibilidades de apreciação da prova, dos factos e do Direito. Será talvez útil uma maior concretização, no campo processual e/ou de interpretação das normas, de princípios de Direito do Ambiente, como “in dubio pro natura”, ou como o princípio da prevenção, similarmente ao que foi feito noutros ramos do Direito, como é o caso de princípios como o “favor laboratoris”, o “favor negotii” ou o “in dubio pro reu".
Deverá evitar-se assim que o Direito do Ambiente, fulcral numa lógica de tutela inter-geracional da Humanidade e do Ecossistema, fique amputado de verdadeira efectividade por acção da invocação da “discricionariedade técnica” para retirar o seu controlo pelos tribunais. Essa será talvez uma solução “confortável” e mais simples, mas certamente mais lesiva para o futuro de todos.

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