Crimes ambientais

1. Introdução

Actualmente, as preocupações ambientais são notórias em todo o mundo. A intervenção humana no planeta e nos ecossistemas causam desequilíbrios ambientais que comprometem as gerações futuras. O reconhecimento consensual dos efeitos nocivos e irreversíveis causados no ambiente pelo Homem, que directamente e reflexamente atingem bens fundamentais levou a que se questionasse uma possível protecção do ambiente a nível penal.
Assim, a tutela penal dos bens ambientais começa a surgir em vários países na década de 70, fruto da crescente informação relativa aos chamados “desvios ecológicos”, evidenciados nos danos causados à atmosfera e ao meio aquático, à destruição massiva das florestas, à destruição de espécies que ou ficaram em vias de extinção ou se extinguiram, à contaminação dos solos, etc. Contudo, a evolução da tutela ambiental nos diferentes países não foi uniforme, decorrente da dificuldade de reconduzir o ambiente a um bem jurídico digno de protecção penal.

2. O direito penal do ambiente
2.1. A Tutela Administrativa e a Tutela Penal do Ambiente: a necessidade de pena
Em Portugal, o ambiente é objecto de tutela jurídico-penal, sendo tipificado como crime no Código Penal e em legislação avulsa. Contudo, a dignidade penal conferida ao ambiente não é aceite por vários autores, considerando que a criminalização das condutas ecologicamente agressivas não se relaciona com substancia direito penal: protecção de bens jurídicos decorrentes da dignidade da pessoa humana numa actuação subsidiária ou de ultima ratio, que só deve intervir, qualificando uma conduta como crime quando outros ramos de direito forem ineficazes ou insuficientes para proteger o bem jurídico. Neste seguimento, a tutela administrativa seria a mais eficaz. Como refere PAULO SOUSA MENDES, não obstante a importância e urgência na defesa do ambiente, ‘a importância atribuída a um bem jurídico nunca constitui argumento suficiente para se proceder à criminalização das condutas que são capazes de o depreciar, nem sequer quando esse bem está no topo da hierarquização constitucional dos bens jurídicos’. Por outro lado, cabe ao legislador ordinário averiguar se há necessidade de tutela penal do ambiente e “por muito estupendo que seja um bem jurídico, o legislador nem por isso há-de deixar de atender ao princípio da subsidiariedade, que obriga à abstenção do direito penal nos casos de suficiência de medidas de protecção extrapenais, inclusive extrajurídicas”. Dentro dos instrumentos extrajurídicos de tutela do ambiente, o autor realça a importância da realização pelo Estado de acções de sensibilização ecológica, que devem ser integradas no âmbito dos planos escolares, de forma a promover a mudança de mentalidades das novas gerações. Como tal, o autor entende que a protecção ambiental deve assentar numa estratégia de acompanhamento das actividades industriais por parte da Administração, à qual caberia assegurar a adopção pelas empresas de padrões de instalação e laboração, defensores da qualidade ambiental e proceder, posteriormente, à respectiva fiscalização. E em caso de incumprimento pelas empresas ou pelos particulares das injunções emitidas pela Administração, haveria lugar à aplicação de sanções contra-ordenacionais.
No entanto, numa perspectiva oposta, VASCO PEREIRA DA SILVA entende que:“a via mais indicada para a tutela sancionatória do ambiente não dispensa a criminalização das condutas mais graves de lesão do ambiente”, já que para o autor a defesa do ambiente é um dos “valores fundamentais da sociedade em que vivemos e corresponde a (renovadas) exigências de realização da dignidade da pessoa humana”. Todavia, o autor adverte que tal não deve significar a banalização do direito penal do ambiente, pois o modo normal de reacção contra delitos ambientais deve ser o das sanções administrativas ou contra-ordenações[1].
Por seu turno, FERNANDA PALMA afirma que a tutela ambiental não dispensa a tipificação de crimes ambientais. Porém, a autora propugna que ela deve estar submetida a “limites rigorosos, não podendo ultrapassar, legitimamente, a evidente repercussão humana”, sendo que a tutela contra-ordenacional pelos meios sancionatórios que oferece e por visar a “reparação do dano e a desmotivação do infractor através do prejuízo pecuniário causado pela sanção (…) oferece mecanismos ideais relativamente a condutas anti-ambientais não imediatamente anti-humanas ou só remotamente perigosas para os bens jurídicos pessoais ou sociais”[2].
No direito português existem crimes ambientais, nomeadamente os previstos no Código Penal, tal como também se consagram sanções administrativas que constam de enumeras disposições legais, que disciplinam as diversas formas de actuação ambiental, na modalidade de contra-ordenações e que seguem o regime do ilícito de mera ordenação social (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro). É partindo da constatação de que a maior parte dos delitos em matéria ambiental são sancionados pela via administrativa, em contraposição ao limitado número de crimes ambientais que o legislador consagrou, que Vasco Pereira da Silva afirma que o modelo privilegiado de tutela sancionatória do ambiente é o administrativo[3][4].

Não obstante o que acaba de vir exposto ser inegável e não obstante o carácter subsidiário do direito penal, a verdade é que neste último decénio se tem avançado aceleradamente no domínio da protecção ambiental.
Daí que no que toca à questão da necessidade do direito penal para a tutela do ambiente, importa ter presente a função orientadora e de prevenção geral positiva deste ramo de direito, sendo que também o Conselho da Europa tem defendido o uso deste instrumento de prevenção como adequado à protecção do meio ambiente[5].
A solução do ordenamento jurídico português aposta na conjugação da tutela penal com a tutela contra-ordenacional do ambiente e tal permite optimizar as vantagens e obviar os inconvenientes dos modelos exclusivistas, ao mesmo tempo que possibilita uma tutela sancionatória plena e efectiva contra as actuações lesivas do meio ambiente.

2.2. Considerações gerais: análise comparativa
A preocupação com a protecção penal do ambiente tem-se imposto, ultimamente, em muitos países. Desde a década de setenta, nos vários países, o legislador começa a sentir a necessidade de recorrer aos meios criminais, em face do crescente número de danos ambientais. Todavia, as diferentes legislações divergem quanto ao âmbito da punição. E, sob este aspecto concreto, os diferentes códigos penais foram recolhendo orientações de organismos e congressos internacionais. Com efeito, assiste-se ao surgimento de novos tipos de crimes e isso em muito se deve a tomadas de posições de organismos internacionais.
A nível europeu, foi a Resolução n.º 77 (28), de 28.10.77, do Comité de Ministros do Conselho da Europa que recomendou a utilização da lei penal contra os responsáveis de desastres ecológicos, poluições e alterações ambientais.
Em Hamburgo, o XII Congresso da Associação Internacional do Direito Penal veio a acolher as posições anteriormente assumidas pelo Conselho da Europa.
Já no que toca à regulamentação penal das questões ambientais nos diversos países, o Código Penal alemão penaliza um grande número de comportamentos, desde o ruído e o envenenamento à manipulação de combustível nuclear. O Código Penal austríaco, de 1974, pune os comportamentos de perigo, dolosos ou negligentes, através das águas ou do ar. Em França, o Código Penal não contem nenhum título com sanções ambientais. As tipificações encontram-se dispersas em normas penais secundárias. A poluição das águas e do ar está incorporada em preceitos isolados do Código Penal, no Código da Saúde Pública e no Código Fluvial. O sancionamento inclui a apreensão dos produtos perigosos, o encerramento dos estabelecimentos causadores da poluição, a publicação das sentenças e a reposição ou restauração dos bens danificados. Em Espanha, foi a própria Constituição que, no n.º 3 do artigo 45.º, legitimou a criminalização pelo desrespeito das normas atinentes à protecção do ambiente, sendo que o Código Penal de 1995 não só ampliou as condutas típicas a punir, como aumentou as penas.
No direito português, a punição criminal vem expressa no Código Penal. Esta criminalização foi iniciada com as alterações de 1995 ao Código Penal (e reforçada com as alterações de 2007) e vem proteger o ambiente de forma directa e em si mesmo. As suas normas restringem-se à protecção dos elementos componentes do ambiente natural e não aos elementos referentes ao ambiente humano, ou seja, aos aspectos culturais, históricos ou artísticos ligados ao conceito amplo de ambiente. Este apenas sofre sanções contra-ordenacionais[6].


2.3. O Bem Jurídico Protegido

Hodiernamente, o ambiente é considerado um bem essencial à vida. Por força da Constituição da República Portuguesa, o ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, constitui um bem jurídico que legitima a intervenção do direito penal na sua regulamentação. Porém, JORGE dos REIS BRAVO, entende que “o bem jurídico que o direito penal protegerá será, não o ambiente enquanto valor absoluto, mas a qualidade do ambiente dentro de certos parâmetros considerados adequados a permitir a vida do Homem com certa qualidade”[7]. Nestes termos, o ambiente não é visto como um bem jurídico integral, mas parcelado pelas suas componentes essenciais: fauna, flora, etc.
O ambiente pode ser tutelado directamente, isto é, pode constituir o bem jurídico imediatamente protegido pela incriminação e, nesse caso, estaremos perante os chamados crimes ecológicos puros. Ou, pode protegido de forma indirecta ou mediata, constituindo o objecto da acção, ainda que o fim imediato seja a tutela de outros bens. Exemplo disso é o artigo 280.º do Código Penal, cujo bem jurídico imediatamente tutelado é a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais alheios de valor elevado. Estes crimes são denominados crimes ecológicos derivados ou impuros.

2.4. A responsabilidade das pessoas singulares e das pessoas colectivas

Relativamente à responsabilidade das pessoas singulares pela prática de crimes ambientais, esta não apresenta qualquer especificidade neste domínio, uma vez que as pessoas singulares responderão nos termos gerais, ao abrigo do disposto no artigo 11.º do Código Penal.
Por outro, a responsabilidade das pessoas colectivas apresenta certas especificidades. Ora, com a revisão de 2007 as pessoas colectivas passaram a ser responsabilizadas face a um comportamento ilícito, por força do artigo 11º, nº 2 do Código Penal. Desta forma, ultrapassa-se a querela que apenas as pessoas singulares (ou melhor, as pessoas em sentido ontológico) são susceptíveis de responsabilidade penal por crimes ambientais. As pessoas colectivas são de facto as principais causadoras de danos ambientais permanentes e irreversíveis que afectam profundamente o nosso ecossistema, pelo que faz todo sentido que sejam objecto de imputação jurídico-penal. De acordo com ANDRÉ VITO, "os entes colectivos devem ser penalmente perseguidos, porque a sua responsabilidade permite repartir melhor as sanções repressivas (...). A responsabilidade penal tende a não ser somente uma questão de indivíduos, de seres humanos que executam actos materiais voluntários, mas também a sanção de uma actividade colectiva tanto mais temível quanto implica o risco de ser mais poderosa e mais anónima"[8]. ANDRÉ VITO e ROGER MERLE referem também que "a pessoa colectiva é perfeitamente capaz de vontade; ela postula mesmo a vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros"[9]. No mesmo sentido se pronuncia FIGUEIREDO DIAS entendendo que não há nenhuma razão dogmática para impedir que as pessoas colectivas "se considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícito respectivos. A tese contrária só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo-de-ilícito exigências normativas que o conformem como uma certa unidade de sentido social." Assim, numa perspectiva da protecção do ambiente as pessoas colectivas passam a puníveis por vários crimes previstos no Código Penal, nomeadamente os crimes de poluição, danos contra a natureza e incêndio de floresta. A responsabilização depende sempre de o crime seja cometido em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança, ou por quem aja sob a autoridade destas. São cominadas, neste contexto, as penas principais de multa e dissolução, as penas substitutivas de admoestação, caução de boa conduta e vigilância judiciária e as penas acessórias de injunção judiciária, interdição do exercício de actividade, proibição de celebrar contratos de certas espécies ou com determinadas entidades, privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos, encerramento de estabelecimento e publicidade da decisão condenatória. A responsabilidade da pessoa colectiva não exclui a responsabilidade da pessoa singular.

2.5. A Estrutura do Crime Ecológico no Código Penal

O Código Penal regula os crimes ambientais no Capitulo III, “Dos Crimes de Perigo Comum”, do Titulo IV, “Dos Crimes contra a Vida em Sociedade”. Aqui estão em causa crimes que se reportam à existência de uma conduta humana eticamente reprovável em consequência do incumprimento de uma disposição legal ou regulamentar, da qual resulta a lesão de um bem ambiental.
Os crimes ambientais são especificamente: o crime de incêndio florestal (artigo 274º do Código Penal), o crime de danos contra a natureza (artigo 278.º do Código Penal), o crime de poluição (artigo 279.º do Código Penal), o crime de poluição com perigo comum (artigo 280.º do Código Penal).

Quanto ao crime de incêndio florestal, está previsto no artigo 274º Código Penal desde a revisão de 2007. Para se preencher o tipo legal é preciso:

§ Provocar incêndio em floresta, mata, arvoredo ou seara, próprias ou alheias.
Desta forma o agente é punido com uma pena de um a oito anos, se actuar dolosamente; com uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa se actuar com negligência; ou com pena de prisão ate três anos se a conduta for praticada com negligência grosseira.

A moldura penal pode agravar-se de 3 a 12 anos se da conduta resultar:

§ Perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado
§ Deixar a vítima em situação económica difícil; ou
§ Actuar com intenção de obter benefício económico;

Constituindo os incêndios florestais fenómenos criminais graves, que põem em causa bens jurídicos individuais - como a vida, a integridade física e o património - a par de bens jurídicos comunitários - como ambiente e a natureza, o legislador tipificou como crime ambiental autónomo o incêndio florestal, tendo suficiente ressonância ético-jurídica para reivindicar a tutela penal. Desta forma, não é preciso recorrer ao artigo 272º para incriminar a conduta do agente, que para preencher o tipo legal era necessário a lesão de outros bens jurídicos, como a vida, a integridade física ou património, sendo o ambiente tutelado reflexamente.

Quanto ao crime de danos contra a natureza, o artigo 278.º do Código Penal dispõe que tal se verifica sempre que alguém:
§ Eliminar exemplares de fauna ou flora em número significativo ou espécie protegida ou ameaçada de extinção;
§ Destruir habitat natural protegido ou habitat natural causado a este perdas em espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas ou em número significativo;
§ Afectar gravemente recursos dos subsolos
§ E actuar desrespeitando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente.
Neste caso, se o autor tiver agido com dolo, ele será punido com uma pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias; mas se actuar com negligência, o autor será punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
No crime de danos contra a natureza, o bem jurídico protegido é o ambiente em si mesmo, sendo que os objectos de tutela da norma são a fauna, a flora, o habitat natural e os recursos do subsolo. E para haver consumação do crime não é necessária a criação de um dano ou perigo directo para o homem.
Por outro lado, para que este crime se efective, é ainda necessário que o agente actue em violação de disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente protectoras dos bens tutelados pelo artigo 278.º do Código Penal. Mas, tal desobediência não é por si só suficiente para determinar a ocorrência do crime, exigindo-se ainda o dano ecológico, que se concretiza na eliminação de exemplares de fauna ou flora ou na destruição de habitat natural, em número significativo, ou na afectação grave dos recursos do subsolo. Daí que segundo GOMES CANOTILHO, o crime de danos contra a natureza surge como um crime de desobediência qualificada pela ocorrência de um dano ambiental.
O nº2 do artigo 278º é uma inovação da Reforma de 2007, que pune com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias, quem comercializar ou detiver para comercialização qualquer espécie de fauna ou flora protegida. O objectivo do preceito é punir condutas eticamente reprováveis que atingem a biodiversidade.

Relativamente ao crime de poluição, este vem previsto no artigo 279.º do Código Penal e verifica-se sempre que alguém:
§ Poluir águas ou solos ou degradar as suas qualidades;
§ Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ou
§ Provocar a poluição sonora mediante a utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza;
§ De forma grave e que contrariem prescrições ou limitações de natureza administrativa ou legal.
Em caso de dolo, o agente será punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias; sendo que em caso de negligência, a agente será punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.
Daqui resulta que, à semelhança do crime de danos contra a natureza, o crime de poluição é um crime ecológico puro, que tem como objecto autónomo a protecção da água, do solo, do ar ou o domínio do som.
Segundo GOMES CANOTILHO, também este configura um crime de desobediência qualificada pelo dano, sendo que a desobediência resulta da indispensabilidade para a ocorrência do crime de uma actividade poluente em medida inadmissível, que se verificará quando a actuação do agente contrariar prescrições legais ou regulamentares impostas pelas autoridades administrativas. Mas, para que haja crime de poluição é ainda necessário o evento material consistente na degradação da qualidade das águas, dos solos, do ar. Daí que a simples desobediência, sem que a conduta cause o evento material, não constitui o crime do artigo 279.º, porque não se verifica a lesão do bem jurídico.
Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA, a estrutura do crime do artigo 279.º do Código Penal é de um tipo aberto, de um tipo em branco, uma vez que o “facto típico não é integralmente descrito no tipo legal incriminador, antes tem de ser complementado, integrado, por prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente”. Além disso, este autor ainda defende que o artigo 279.º corresponde a um tipo modal, pois “não basta a produção do resultado típico, mas a lesão em determinadas circunstâncias, ou seja, após prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente (…) e sob cominação de aplicação das sanções previstas na norma incriminadora”[10].
Esta remissão feita para as prescrições das autoridades administrativas é compreensível, uma vez que não é tecnicamente possível, nem aconselhável, definir de forma estável e duradoura o grau de poluição das águas, do solo ou do ar que reclamam a intervenção do direito penal. A prescrição administrativa constitui um critério funcional de aferição da gravidade especial do desvalor da acção, ou seja, a acção é especialmente desvaliosa, a ponto de originar a responsabilidade criminal, porque o agente não só polui, como polui depois de avisado pela administração para adoptar um comportamento que obviaria presumivelmente o resultado, e depois de avisado de que o desrespeito das prescrições ou limitações o faria incorrer em responsabilidade criminal.
Todavia, de acordo com a opinião de GERMANO MARQUES DA SILVA, a estrutura do crime de poluição, previsto no artigo 279.º do Código Penal é inadequada, pois, segundo este autor: “basta não haver cominação para que, apesar de se estar perante uma actividade poluidora à revelia de normas administrativas sobre a matéria, não se preencha o tipo”[11].
Para GOMES CANOTILHO, a configuração dos crimes ecológicos, previstos nos artigos 278.º e 279.º, como crimes de desobediência a prescrições administrativas faz deles leis penais em branco, porque o preenchimento do tipo legal de crime só pode ser feito por remissão para outras normas. Daí que para se aferir se existe ou não crime não basta a análise dos artigos 278.º e 279.º do Código Penal, mas é ainda necessário ter em conta o prescrito em normas administrativas.
Para este autor, e a propósito da qualificação dos crimes ecológicos como normas penais em branco, devemos distinguir o crime de danos contra a natureza do crime de poluição, porque enquanto o primeiro “é bastante mais determinado e, consequentemente, dotado de maior autonomia relativamente ao direito administrativo”, o crime de poluição apresenta maior dependência relativamente as normas e actuações administrativas. Mas apesar disso, o autor defende a constitucionalidade desse artigo, uma vez que do artigo 279.º do Código Penal “resulta claramente qual o desvalor da acção proibida, o desvalor do resultado lesivo e também se identifica inequivocamente o bem jurídico tutelado: o ambiente nos seus componentes naturais água, solos, ar e domínio do som”.
Por outro lado, cumpre ainda acrescentar que na opinião de Germano Marques da Silva, os crimes dos artigos 278.º e 279.º do Código Penal configuram crimes de dano, uma vez que “para a sua consumação importa a efectiva lesão do elemento do meio ambiente natural considerado na norma incriminadora, pois nestes crimes não é punível a tentativa”.

Quanto ao crime de poluição com perigo comum, este vem previsto no artigo 280.º do Código Penal e é considerado um crime qualificado em relação ao crime de poluição. Este tipo legal de crime fica preenchido sempre que alguém:
Praticar a conduta referida no crime de poluição (poluição da água, dos solos, do ar, dos sons, em medida inadmissível);
Criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem; ou
Criar perigo para bens patrimoniais alheios de elevado valor.
Daí que se a conduta e a criação do perigo forem dolosos, o agente será punido com uma pena de prisão que pode ir de 1 a 8 anos; mas, se a conduta for dolosa e a criação do perigo ocorrer por negligência, o agente incorrerá em pena de prisão até 5 anos.
O crime previsto no artigo 280.º não constitui um crime ecológico puro, pois, neste caso, o ambiente é tutelado de forma meramente mediata. Só haverá crime de poluição com perigo comum se a conduta do agente for perigosa para bens pessoais ou patrimoniais especialmente relevantes para o homem. Este artigo consagra, assim, uma punição agravada do agente, porque, ele através da sua conduta poluidora, criou um perigo para a vida ou para a integridade física de outra pessoa ou criou um perigo para bens patrimoniais de elevado valor. Daí que no caso do crime de poluição com perigo comum o ambiente não é merecedor de uma tutela autónoma.
Esta protecção reflexa ou mediata dos bens ecológicos vigorou até à Revisão do Código Penal de 1995. Até 1995, o Código Penal era partidário de uma concepção antropocêntrica do ambiente, pois subentendia-se que o ambiente não necessitava de qualquer protecção em si mesmo, enquanto bem jurídico merecedor de tutela autónoma. Os componentes ambientais só adquiriam relevância quando a sua lesão provocasse uma ofensa para os interesses humanos.
O artigo 280.º do Código Penal é qualificado como um crime de perigo concreto, na medida em que a sua consumação depende da prova de que a conduta poluidora criou uma situação de perigo para a vida, para a integridade física ou para bens patrimoniais de elevado valor.



3. Conclusão

Do exposto resulta que o ambiente constitui hoje em dia um bem jurídico com dignidade penal. Para além do Direito Penal Comum, há vários diplomas que integram o chamado Direito Penal Secundário, como por exemplo, Lei 30/86, de 27 de Agosto e no Decreto-lei 136/96, de 14 de Agosto, relativamente a crimes de caça, a Lei 90/88 de 3 de Agosto, relativamente ao lince ibérico, entre outras. Contudo, cabe ao Direito Administrativo, apoiado no ilícito de mera ordenação social a tarefa maior na protecção do ambiente. De facto, este apresenta-se como mais célere e eficaz, abrangendo as demais condutas não incluídas no Código Penal, por não serem merecedoras de censura ética e, como tal, susceptíveis de criminalização (atento sempre ao seu carácter subsidiário).
Por outro lado, as normas penais em branco continuam a ser o verdadeiro ‘calcanhar de Aquiles’ da efectividade do Direito Penal. Para produzirem os seus efeitos estão dependentes de normas ‘extra-penais’, para procederem à configuração geral do crime. Exemplo dessas normas temos os artigos 278º e 279º CP. Mesmo que a conduta ilícita se reconduza a um crime, o seu tipo legal nunca está preenchido se não houver uma norma legal, regulamentar ou uma obrigação administrativa a ditar a sua definição.
De todo o modo, é inegável o contributo que a Reforma do Código Penal deu ao reforço da tutela do ambiente, alargando o seu âmbito subjectivo de imputação e tipificando autonomamente o crime de incêndio florestal.
[1] Silva, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Coimbra, Almedina, 2005, p.280 e 281.
[2] Palma, Fernanda, “O Direito Penal do Ambiente – Uma primeira abordagem”, in Direito do Ambiente, Instituto Nacional da Administração, 1994, p.438.
[3] Silva, Vasco Pereira da, ob. cit., p.281.
[4] O direito de sancionamento contra-ordenacional surge no nosso ordenamento jurídico de forma a não submeter ao direito penal matérias que não deveriam ter essa dignidade, por não traduzirem condutas de gravidade social que ponham em causa a própria subsistência da sociedade. Desta forma, em Portugal há vários diplomas que apresentam a coima como sanção: Lei de Base do Ambiente, artigos 47º e 48º; D. L. n.º 433/82, de 27 de Outubro, que regula o regime geral das contra-ordenações e que no artigo 1.º estabelece que constitui uma contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal, no qual se comine uma coima; Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, enquanto a lei quadro das contra-ordenações ambientais; Decreto-Lei nº 47/90, de 9 de Fevereiro, concernente ao Uso e Comercialização de Diversas Substâncias Perigosas; Decreto-Lei nº69/2000 sobre o Regime Jurídico da Avaliação do Impacte Ambiental, entre outros.
[5] Atente-se para tal à Resolução do Conselho da Europa 28/77, de 27 de Setembro de 1977, relativa à contribuição do direito penal para a protecção do meio ambiente; e à Resolução n.º 1, adoptada pela XVII Conferência de Ministros Europeus da Justiça, realizada em Istambul e referente à protecção do meio ambiente pelo direito penal.

[6] Condesso, Fernando Reis, Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, p.502.
[7] Bravo, Jorge dos Reis, A Tutela Penal dos Interesses Difusos, Coimbra Ed., 1997, p.32.
[8] Relatório apresentado no VII Congresso de Direito Penal.
[9] In Tratado de Direito Criminal, dos AA.
[10] Silva, Germano Marques da, ob. cit., p.16.
[11] Silva, Germano Marques da, ob. cit., p.17.
Ana Margarida Araujo, subturma 11

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