Trabalho: A Proximidade entre o Direito do Ambiente e o Direito do Urbanismo (em especial, o Regime da Reserva Ecológica Nacional)
Publicada por Subturma 11 à(s) 16:43
Breve Introdução
É sabida a influência das normas e instrumentos de Direito do Urbanismo na elaboração e prossecução de estratégias ambientais, baseadas numa ideia de desenvolvimento sustentável. Efectivamente, e apesar de tanto o Direito do Urbanismo como o Direito do Ambiente possuírem âmbitos diferentes e cada qual ter reservado o seu espaço de autonomia didáctica, é indiscutível que ambos têm pelo menos um escopo final comum: ambos pretendem melhorar a vida dos cidadãos, através de uma acção da Administração Pública que se deve pautar por melhorias qualitativas, tanto a nível das infra-estructuras urbanas, como (no caso do ambiente) numa efectiva salvaguarda dos elementos ambientais para usufruto dos cidadãos. De facto, sem as normas urbanísticas e ambientais, o aproveitamento dos vários recursos e possibilidades do nosso país seria certamente mais escasso, podendo levar a situações caóticas em alguns aspectos.
No âmbito deste trabalho, procurarei fazer uma aproximação geral entre o urbanismo e o ambiente, e falar em especial do regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN), instrumento que tem tanto em comum com os dois ramos do Direito.
1.-Ambiente e Urbanismo na Constituição
1.1.- O Ambiente na Constituição
A nossa Constituição consagra de diversas formas a protecção do ambiente em território nacional. No entanto, o ponto que salta mais à vista, neste aspecto, na Constituição, é o facto de esta partir de uma visão do ambiente centrada no Homem e cidadão: o (“bom”) ambiente alcançado através de um desenvolvimento sustentável e de uma política de preservação da natureza, só existe por necessidade dos cidadãos e para que estes possam usufruir, no presente e no futuro, de uma atmosfera saudável e com perspectivas do máximo de qualidade de vida possível.
Esta máxima da Constituição implica o nascimento de um direito fundamental ao ambiente, que está indiscutivelmente plasmado no artigo 66.º, n.º 1, da Constituição (“Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”), bem como no artigo 9.º, alínea d), quando se fala em “efectivação (...) dos direitos ambientais”. Estas duas disposições trazem algumas conclusões: em primeiro lugar, resulta, sem dúvida, destes dois pontos, que o Estado (bem como os particulares) têm o dever de respeitar zelosamente os direitos ambientais dos demais cidadãos. Como diz Gomes Canotilho, há um direito negativo (à abstenção) de “acções ambientalmente nocivas”; o Estado não pode, seja através de que meio for, ter essa atitude prejudicial ao meio ambiente de forma injustificada. Por exemplo, o Estado não pode emitir leis ambientais onde não sejam devidamente ponderados os diversos princípios constitucionais em matéria de ambiente; ou, noutra acepção, não pode um órgão do Estado omitir a ponderação do prejuízo que pode advir para um (ou vários) cidadãos no âmbito de um procedimento em matéria ambiental. Para além disso, os vários órgãos do Estado devem tornar os direitos ambientais efectivos, evitando que a consagração constitucional caia no vazio, como acontece com outros direitos fundamentais. Esta já será uma dimensão positiva dos direitos fundamentais, que obriga o Estado a actuar perante situações de degradação ambiental ( sob o signo dos diversos princípios enunciados ao longo do artigo 66.º da Constituição), tomando medidas legislativas, administrativas, fiscais e penais que possibilitem um verdadeiro gozo dos direitos ambientais.
Está aqui, sem dúvida, uma lógica de direito fundamental, que decorre expressamente da Constituição. Assim, a defesa ambiental pode impor restrições de outros bens fundamentais, como, por exemplo, o direito de propriedade privada (aritigo 62.º) ou a liberdade de iniciativa económica (artigo 61.º). No entanto, o direito ao ambiente tão pouco é absoluto. Considerando-se então o direito ao ambiente como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, sobretudo por força da sua dimensão negativa, que impede as acções que lesam o ambiente (art. 17.º da Constituição), convém não esquecer as ideias esquemáticas que nos são dadas pelo artigo 18.º, como o princípio da aplicabilidade directa e vinculação das entidades públicas e privadas, embora a vinculação das últimas possa ser menos intensa ( n.º 1), bem como o princípio da proporcionalidade que impede as restrições dos direitos, liberdades e garantias em mais do que o estritamente necessário, e só para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (n.º 2).
É necessário referir ainda, em termos um pouco mais aprofundados, a dimensão objectiva do ambiente. Tal exige uma fixação mais demorada nas disposições da Constituição que instituem o Estado na obrigação de realizar diversas tarefas, em nome da efectivação dos direitos ambientais (artigo 9.º, alínea d) da Constituição). Desde logo, apercebemo-nos do facto de a lei máxima consagrar como tarefa fundamental do Estado a efectivação dos direitos ambientais bem como, na alínea e) do mesmo artigo 9.º, estipular a defesa da natureza e ambiente igualmente como tarefa fundamental do Estado. Nesta última alínea, a Constituição visa dar ao ambiente e à natureza a importância de elemento caracterizador do povo português, considerando que estes também são elementos de identidade nacional, juntamente com o património cultural. Tal diz-nos bem da importância do direito ao ambiente e das ponderações ambientais feitas na Constituição. Isto porque todas as disposições do artigo 9.º, sem excepção, não dão margem de manobra à actuação dos órgãos estaduais: estes estão vinculados à prossecução dessas tarefas, não podendo eximir-se à sua concretização; há aqui um objectivo que é endossado ao Estado, que este não pode recusar, pois não é uma figura desprovida de objectivos. Os titulares de cargos públicos não podem escolher não prosseguir estes fins, e devem fazê-lo com o máximo de zelo, devendo ser na sua actuação o mais eficiente possível.
Poder-se-á perguntar se o Estado será capaz de cumprir de forma eficaz o extenso catálogo de tarefas que lhe são atribuídas pelo artigo 9.º; no entanto, uma coisa é certa: o Estado está vinculado a prosseguir esses fins.
Cumpre ainda fazer uma última (e breve) anotação aos princípios pelos quais os órgãos estaduais se devem reger ao desenvolver a sua actividade em matéria ambiental. Em primeiro lugar, como em várias outras formas de actuação da Administração, para salvaguardar o direito ao ambiente é necessária uma participação dos cidadãos (artigo 66.º, n.º 2: “...com o envolvimento e participação dos cidadãos”), tanto em matéria legislativa, como em matéria de procedimentos administrativos. Em relação à primeira, ganham relevância as organizações não governamentais de ambiente, que têm direito de participação na definição da política e das grandes linhas de orientação legislativa em matéria de ambiente (artigo 6º da Lei 35/98). No que toca à segunda forma de participação, este princípio é hoje comum a quase todas as formas de actividade administrativa e é garantido pela Constituição (artigo 267º, n.º5). Especialmente nos procedimentos administrativos de Direito Ambiental este princípio adquire uma importância bastante grande. Pense-se, por exemplo, na participação pública em matéria de avaliação de impacto ambiental (artigo 14.º do Decreto-Lei 69/2000). Este princípio de participação colectiva pode ter bastante relevância, aproximando a democracia das populações e sensibilizando as pessoas em geral para a questões ambientais.
Para além disso, temos ainda na alínea a) do n.º 2 do artigo 66.º o importante princípio da prevenção. Tendo em conta que grande parte das lesões ambientais resultantes da actividade do homem podem ser controladas por uma actuação diligente e de previsão (e não só de reacção), este princípio é talvez o mais importante dos princípios constitucionais em matéria de ambiente, na medida em que se encontra subjacente em todas as normas constitucionais de ambiente, como bem salienta o professor Vasco Pereira da Silva. Da mesma forma, também o princípio do equilíbrio, que consta da alínea b) do mesmo artigo é importante, sobretudo na concretização de uma melhoria na qualidade de vida das populações e na realização de um desenvolvimento sustentável. De referir que, para atingir esse equilíbrio, a Constituição põe o ordenamento do território ao serviço do ambiente.
Na alínea d), por sua vez, aparecem dois princípios: o princípio do aproveitamento racional e o princípio da solidariedade entre gerações, que estão intimamente ligados. Com efeito, não se deve promover uma política ambiental de desbaratamento dos recursos ecológicos, pois como hoje se sabe, estes são limitados e não está garantida a a sua renovação ad aeternum. Assim, também este valor de solidariedade intergeracional deve estar presente em toda a actividade ambiental. Por último, deve-se ter em conta ainda o princípio da colaboração entre as várias entidades do Estado, como atesta a alínea e), do n.º 2 do artigo 66.º da Constituição, nomeadamente entre a administração directa e a administração autónoma, bem como promover uma política fiscal adequada à protecção do ambiente (artigo 66.º, n.º 2, alínea h) da lei fundamental).
1.2.- O Urbanismo na Constituição
Quanto ao urbanismo, este pode igualmente ser visto na Constituição de várias formas. O urbanismo vem incluído na lei fundamental no artigo 65.º, que tem como epígrafe “Habitação e Urbanismo”. Assim, no n.º 2, alínea a) deste artigo temos uma dimensão utilitária do urbanismo, servindo este de meio para garantir o direito à habitação. De facto, é indiscutível que as políticas de ordenamento do território servem para delimitar os espaços consagrados à habitação, nomeadamente através das escolhas e tratamento das áreas urbanas que servirão para habitações sociais. Esta é uma das funções incumbidas pela Constituição ao urbanismo e ordenamento do território, e prende-se com uma ideia básica de urbanismo, onde se visa garantir o mínimo de condições dignas de habitação à população, integrando nestas uma rede adequada de transportes públicos e de equipamento social. Este artigo prova que a actividade de planeamento urbanístico pondera inúmeros interesses públicos, que muitas vezes não são perceptíveis; e que, apesar do direito do urbanismo ter um objecto próprio (no fundo, a definição das regras de uso, ocupação e transformação dos solos – artigo 65.º, n.º 4 da Constituição), conservando a sua autonomia, não é menos certo que as suas opções são influenciadas por um sem número de factores. Essa ponderação é um elemento caracterizador da actividade urbanística, que se torna assim necessariamente dinâmica e aberta a influências de outros pontos do ordenamento jurídico (como o direito do ambiente): para “perseguir” o seu objecto, para que o uso, ocupação e transformação dos solos seja idóneo, a actividade urbanística é necessariamente cruzada por variadíssimos elementos, não podendo a ponderação destes ser recusada.
Tendo isto em conta, e continuando a nossa análise, confrontamo-nos com o artigo 9.º, alínea e) da Constituição, que define como tarefa fundamental do Estado “assegurar um correcto ordenamento do território”. Já falámos do âmbito deste artigo e analisámos os outros elementos desta alínea no ponto anterior. No entanto, é preciso ainda indicar que aqui um correcto ordenamento do território é visto como um fim em si, mas também como uma forma de proteger o património cultural, defender a natureza, o ambiente e os recursos naturais, pois como se disse são elementos de identidade nacional com os quais o povo português se identifica, presentes em toda a dimensão do território nacional.
Por sua vez, o artigo 65.º, n.º 4 da Constituição tem vários elementos a considerar. O que salta mais à vista é, sem dúvida, o facto de toda a actividade urbanística, seja ela de âmbito, estadual, regional ou local, ser sempre uma tarefa exclusivamente estadual,considerando este artigo o urbanismo como uma função pública (reforçado, aliás, pelo já mencionado artigo 9.º, alínea e)). Assim, toda a planificação urbanística, desde a elaboração de um Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território até uma ínfima alteração a um Plano de Pormenor, é obrigatoriamente da competência dos respectivos órgãos estaduais.
Ainda no artigo 65.º, n.º 4 podemos verificar que os órgãos estaduais podem proceder a expropriações necessárias para satisfazer necessidades públicas urbanísticas. Estas expropriações devem, como é natural num Estado de Direito, ser compensadas com o pagamento de uma justa indemnização e com base na lei respectiva (artigo 62.º, n.º 2 da Constituição). Essa lei é obviamente o Código das Expropriações, que determina que durante o desenvolvimento de um procedimento expropriativo se sigam os princípios da legalidade, justiça, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa fé (artigo 2º do Código das Expropriações), só podendo a entidade expropriante dar seguimento ao procedimento de expropriação quando haja uma verdadeira causa de utilidade pública, devidamente declarada e apenas quando essa entidade tenha competência para tal, deferida por lei (artigo 1º do Código). O pagamento contemporâneo de justa indemnização deve seguir os critérios definidos no artigo 23º do mesmo diploma e corresponder “ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal”, calculado à data de declaração de utilidade pública (artigo 24º do Código das Expropriações).
Uma última nota para as disposições constitucionais em matéria de urbanismo refere-se ao artigo 65.º, n.º 5. Este garante a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico, tal como é garantida no artigo 66.º, n.º 2 o envolvimento e participação ambiental em matéria ambiental. É necessário referir que aqui, a Administração Pública, devido à multiplicidade de orientações que pode tomar perante a elaboração de um plano, pois dificilmente a Administração Pública tem uma margem de discricionaridade tão grande como na elaboração do conteúdo dos instrumentos de gestão territorial, a participação dos particulares tem precisamente como objectivo diminuir essa margem de discricionaridade. Assim, na esteira do professor Fernando Alves Correia, podemos dizer que é esse o “fundamento específico” para a participação dos particulares na actividade de planeamento. Sendo o planeamento algo de dinâmico, onde há inúmeros valores a ponderar (tanto de ordem social como de de ordem económica) pode haver uma tendência da Administração para não ponderar tudo da forma devida. A intervenção dos particulares pode servir então para colmatar essa lacuna, de forma a alertar o órgão encarregue da elaboração do plano para uma ponderação mais correcta. Obviamente, isso não quer dizer que são os particulares que elaboraram o plano respectivo: eles apenas equilibram a balança e dão à Administração um melhor critério para as tomadas de decisão quanto à utilização dos solos. A este “fundamento específico” juntam-se o “fundamentos gerais” que justificam a participação dos cidadãos na actividade administrativa, como a falta de conhecimentos e experiência da Administração em certas matérias, de forma a aumentar a eficiência das escolhas administrativas, permitindo-se um contacto mais directo e democrático entre os órgãos estaduais e os cidadãos.
Algumas normas que atestam a participação dos particulares na elaboração dos instrumentos de gestão territorial podem ser encontrados nos artigos 21.º da Lei de Bases de Política de Ordenamento do Território, bem como nos artigos 6.º, 33.º, 40.º, 48.º, 58.º, 65.º e 77.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, que se concretiza sobretudo através do mecanismo da discussão pública.
2.- As relações especialmente privilegiadas entre o Ambiente e o Urbanismo
Pelo que foi dito atrás, e retirado apenas da observação do panorama constitucional do ambiente e urbanismo, podemos afirmar que até o observador mais desatento tem que constatar que há uma relação de grande proximidade entre estes dois ramos, podendo um e outro confundir-se, pois várias vezes visam salvaguardar os mesmos interesses e defender valores comuns de interesse público. Deste ponto de vista, pode tornar-se complicado definir a esfera do objecto de cada uma destas disciplinas de Direito Público.
No âmbito deste trabalho, o que nos interessa compreender é o modo como as regras jurídicas urbanísticas podem contribuir para uma maior salvaguarda e defesa do ambiente. Para o fazer, é necessário então delimitar a esfera de alcance das normas urbanísticas. Ora, adoptando uma concepção ampla do direito do urbanismo, como fazem o professor Fernando Alves Correia e a professora Sofia Galvão, podemos concluir que esta disciplina jurídica, através dos seus institutos, vai regular todo e qualquer uso, ocupação e transformação dos solos, não se compreendendo apenas no seu âmbito uma dimensão citadina, de construção e maneio de solos urbanos mas, para além dessa, englobando também a disciplina de utilização de outros tipos de solos. A cidade não é removível da paisagem, faz antes parte dela, existindo uma dimensão contínua do território nacional. Assim, poder-se-á dizer que toda a actividade administrativa com vista à regulação da utilização dos solos, seja esta actividade realizada quer a nível nacional, regional ou local, irá reger-se sempre por normas e princípios urbanísticos, entendidos neste sentido lato.
Este objecto é então a principal razão de ser das normas de Direito do Urbanismo. No entanto, e como já foi referido, na elaboração dessas normas, tomando em particular atenção os instrumentos de gestão territorial, elas visam uma ponderação de interesses onde cabe, obviamente o ambiente. Basta ver o artigo 3.º da Lei de Bases de Política de Ordenamento do Território, onde as suas alíneas c) e d) definem como fins da política do ordenamento do território “Assegurar o aproveitamento racional dos recursos naturais, a preservação do equilíbrio ambiental, a humanização das cidades e a funcionalidade dos espaços edificados” e “Assegurar a defesa do património cultural e natural”, respectivamente. Por seu turno, o artigo 10.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial obriga a que estes identifiquem os recursos e valores naturais (alínea b), as áreas agrícolas e florestais (alínea c)) e a estrutura ecológica (alínea d)), que são posteriormente desenvolvidos nos artigos 12.º, 13.º e 14.º do mesmo diploma. Estes elementos são claramente de interesse público, e devem ser harmonizados com outros interesses públicos com expressão territorial (artigo 8.º, n.º 2), e a sua posição na hierarquia dos interesses a tomar em conta na elaboração de um instrumento de gestão territorial deve ser justificada (artigo 8.º, n.º 1). Ainda com relevância neste âmbito, o artigo 9.º do RJIGT obriga à ponderação de motivos ambientais quando haja incompatibilidade entre interesses públicos a salvaguardar num instrumento de gestão territorial.
Por seu turno, a Lei de Bases do Ambiente considera como instrumentos de política de ambiente e de ordenamento do território: o plano nacional; o ordenamento integrado do território a nível regional e municipal; as reservas agrícola e ecológica nacionais; os planos regionais de ordenamento do território os planos directores municipais e outros instrumentos de intervenção urbanística (artigo 27.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e)). Já para não falar do artigo 17.º, n.º 2 que obriga a Administração, nas actividades de ordenamento do território e de urbanismo, a ter em conta as considerações da Lei de Bases do Ambiente.
Muitos mais exemplos de disposições legais se poderiam dar para demonstrar essa aproximação. Há, de facto, inúmeros objectivos em comum às duas disciplinas e muitas vezes fica-se com a sensação, através da leitura dos diplomas legais, que ambos os ramos do direito se consomem mutuamente, consoante o fim principal da lei seja a definição da utilização dos solos ou a protecção dos mais variados recursos ambientais. No entanto, em última análise e no seu cerne, as duas disciplinas não se confundem: quanto ao direito do urbanismo, já vimos qual é o seu objectivo principal e a sua essência. Em relação ao direito do ambiente, vimos que este visa preservar os recursos naturais, nas suas mais variadas vertentes, disponíveis ao alcance dos cidadãos em território nacional, procedendo desta forma a um equilíbrio ecológico, que melhora a qualidade de vida dos cidadãos (é a já falada noção antropocêntrica, que parte do direito fundamental do homem ao ambiente, de forma a que este usufrua dos variados recursos naturais). São estas as razões que justificam a autonomia de ambos os ramos do direito; se no âmbito da actividade administrativa ambos se cruzam, consagrando-se, por exemplo, direitos e deveres ambientais em normas urbanísticas (como o artigo 44º, nº 1 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação), tal advém do facto de o leque de atribuições e de competências da Administração Pública se ter alargado imenso no âmbito do Estado Social. Do mesmo modo, a evolução das normas administrativas vai permitindo uma correcção dos erros do passado: se hoje em dia a Administração é obrigada a colocar imensos “pesos na balança” aquando da tomada de decisões, tal acontece porque houve um alargamento da ideia do que é “interesse público” e da tutela dos direitos dos particulares, tanto a nível processual como procedimental (sendo que é este que agora nos interessa) que, na minha opinião, justifica perfeitamente uma maior detenção na função decisória da Administração, especialmente em matérias ambientais.
3.- A Resrva Ecológica Nacional
3.1.- A sua natureza jurídica
Continuando o âmbito do nosso trabalho, cumpre agora falar da Reserva Ecológica Nacional (REN) em especial, visto esta ter um regime que se identifica muito com as relações especiais que há entre os dois ramos de direito . De facto, dificilmente se encontra na nossa ordem jurídica um elemento que contenha tantos pontos de contacto simultâneos com o direito do ambiente e o direito do urbanismo. Isso decorre da sua própria natureza jurídica. Vejamos porquê.
A REN é considerada pela Lei de Bases do Ambiente como um instrumento de política de ambiente e de ordenamento do território (artigo 27.º, n.º 1, alínea d)), sendo que a lei define-a posteriormente no artigo 1.º do Decreto-Lei 93/90 (na redacção do Decreto-Lei 180/2006) como “uma estrutura biofísica básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas”. Ora deste conceito legal podem retirar-se algumas conclusões. Em primeiro lugar, a REN implica restrições ao uso de solos que tenham certas características ecológicas específicas. Os solos que façam parte da REN, devido às suas características de preservação de sistemas ecológicos, limitam as posições dos respectivos proprietários: estes não vão poder construir livremente ou aproveitar economicamente o solo. Essa limitação em toda a área da REN justifica-se por um fim de interesse público, que é a preservação da natureza, que decorre do direito ao ambiente.
Cria-se nestes termos um conflito entre direitos fundamentais, entre o direito de livre iniciativa económica e o direito de propriedade, por um lado – artigos 61.º e 62.º da Constituição – e o direito ao ambiente, por outro (artigo 66.º da lei fundamental). No entanto, o regime da REN justifica-se perfeitamente, pois tanto o direito de livre iniciativa económica como o direito de propriedade estão vinculados a uma função social. Em relação à iniciativa económica, a própria Constituição nos diz isso, mercê do artigo 61.º, n.º 1 que refere que aquela se exerce livremente “tendo em conta o interesse geral”; em relação à propriedade privada também ela está onerada por uma função social genérica, que se concretiza nomeadamente na possibilidade de se proceder a expropriações por utilidade pública, mediante pagamento de justa indemnização (artigo 62.º, n.º 2). Esta função social é concretizada em especial na REN pelo interesse público de preservação da natureza, de forma a tutelar o direito ao ambiente. Existe então um ónus que decorre da função social da propriedade privada e iniciativa económica e que (só) se vai justificar caso a caso pela concreta situação física e características dos solos.
Destas ideias decorre uma pergunta: será a REN um instrumento urbanístico ou antes um instrumento de defesa ambiental? Por um lado, a REN é claramente um instrumento que regula o uso, ocupação e transformação dos solos, impondo restrições à livre disposição destes. Tal facto poderia caracterizar a REN como um instituto de direito do urbanismo; no entanto, a própria lei qualifica a REN como um instrumento de política ambiental (artigo 27.º, n.º 1, alínea d) da Lei de Bases do Ambiente) e, pelo conceito legal que decorre do artigo 1.º do Decreto-Lei 93/90, vemos que o fundamento da sua existência é meramente de natureza ambiental: a REN tem como objectivo conservar a natureza e proteger ecossistemas biológicos presentes em certas parcelas do território nacional.
Podemos então dizer que a REN tem dupla natureza jurídica, pois é simultâneamente um instrumento de regulação da utilização dos solos, que se justifica por motivos de ordem ambiental. Podemos considerá-la então uma restrição de utilidade pública, que não só limita os particulares, como também a própria Administração, sendo um limite à discricionaridade do planeamento, já que aquando da elaboração ou alteração de qualquer instrumento de gestão territorial, a violação da REN está for a de questão, como veremos adiante. De referir ainda que na base da criação da REN parecem estar, em matéria de ambiente, o princípio da prevenção - pois visa-se evitar que certos ecossistemas sejam afectados por actividades humanas danosas, bloqueando-se certas actividades em determinados solos - bem como o princípio do equilíbrio, já que se pretendem salvaguardar os ecossistemas existentes num quadro de desenvolvimento sustentável.
3.2.- Regime Jurídico da REN
O âmbito da REN abrange as “zonas costeiras e ribeirinhas, águas interiores, áreas de infiltração máxima e zonas declivosas referidas no anexo I e referidas no anexo III” (artigo 2.º do Decreto-Lei 93/90). No entanto, obviamente, nem todas as zonas do território nacional com estas características constituem a Reserva Ecológica Nacional. Cabe ao Governo, por resolução do Conselho de Ministros, delimitar as áreas abrangidas pela REN, ouvida a Comissão da REN (artigo 3.º, n.º 1 e artigo 8.º do Decreto-Lei 93/90), sendo que esta delimitação é obrigatória (artigo 3.º, n.º 4 do mesmo diploma). Esta comissão é composta por representantes de vários membros do Governo, ligados aos ministérios do Ambiente e Ordenamento do Território, da Agricultura, da Economia e da Defesa Nacional (várias alíneas do artigo 9.º, n.º 1), bem como por um representante da Associação Nacional de Municípios Portugueses (artigo 9.º, n.º 1, alínea f)). Integram ainda a Comissão dois cidadãos que tenham provas dadas em matéria de ordenamento do território e ambiente, sendo nomeados por despacho do membro do Governo responsável pela área do ambiente e ordenamento do território (o Ministro); o seu mandato é de dois anos, renovável (artigo 9º, n.º 3 do Decreto -Lei 93/90). Quando a Comissão emitir parecer sobre as propostas de delimitação da REN, os municípios abrangidos por esta podem designar um representante que fará parte da Comissão (artigos 8.º, alínea b) e artigo 9.º, n.º 4 e 5).
Precisamente quanto às propostas de delimitação da REN, estas são elaboradas pelas comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), com base em estudos próprios ou de outras entidades (artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei 93/90), e tais propostas devem ponderar as a necessidade de exclusão de áreas legalmente construídas ou de construção já licenciada ou autorizada, bem como das destinadas à satisfação das carências existentes em termos de habitação , actividades económicas e infra-estruturas (artigo 3.º, n.º 3 do Decreto-Lei 93/90). Este último número tem subjacente duas ideias: em primeiro lugar, visa dar alguma relevância ao princípio da segurança jurídica, princípio geral do nosso ordenamento que, em matéria de ambiente e urbanismo não é, muitas vezes, devidamente valorizado. Basta pensarmos na quantidade enorme de legislação que estes ramos contêm, já para não falar da constante (frenética?) renovação da mesma, o que não favorece a estabilidade de decisões (tanto em procedimentos administrativos como em processos judiciais). Acresce a isto o facto de os procedimentos previstos na primeira parte deste artigo (“áreas legalmente construídas ou de construção já licenciada ou autorizada”) poderem ser bastante morosos e dispendiosos para os particulares. Em segundo lugar, a parte final deste artigo confirma mais uma vez que a actividade de planeamento não deve ter apenas presentes interesses ambientais, sendo outros valores de ponderação obrigatória.
Continuando, o n.º 6 do artigo 3.º do regime da REN refere que as propostas de delimitação da REN devem ter a participação de outras entidades competentes em função da localização e da matéria, e o n.º 9 do mesmo artigo indicam-se quais as áreas que se devem delimitar na elaboração de uma proposta. Por sua vez, os n.º 10, 11, 12 e 13 do artigo 3.º pretendem articular e coordenar o regime da REN com os planos urbanísticos com eficácia plurissubjectiva. Com efeito, para além de vincularem as entidades públicas, os planos municipais e especiais de ordenamento do território vinculam também os particulares – artigo 11.º, n.º 2 da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território – o que justifica esta articulação, para que não haja regimes díspares em dois instrumentos que regulam a utilização dos solos. No entanto, como decorre deste Decreto-Lei e do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, os procedimentos são autónomos. As condições de articulação estão referidas nos artigos indicados, do qual se salienta o n.º 13 do artigo 3.º, que determina que quando a demarcação da REN nos planos especiais ou municipais não coincida com a delimitação vigente, o plano respectivo deve ser sujeito a revisão no prazo de 90 dias, nos termos do artigo 97.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial. Daqui podemos inferir a regra que consta do artigo 10.º do regime da REN, onde se indica que as áreas integradas na REN são obrigatoriamente demarcadas em todos os instrumentos de gestão territorial, mas especialmente “nos planos especiais e municipais”( quanto a estes últimos, observem-se os artigos 86.º, n.1º, alínea c), 89.º, n.º 1, alínea c) e 92.º, n.º 1, alínea c) do RJIGT, que obriga à assinalação das áreas de REN na planta de condicionantes dos planos municipais de ordenamento do território). Este último ponto confirma a já referida eficácia plurissubjectiva destes planos.
Quanto às acções proibidas em área de REN, estas constam do artigo 4.º , n.º 1 do Decreto-Lei 93/90, e incluem , entre outras, operações de loteamento, de urbanização e destruição de coberto vegetal. No entanto, há várias excepções consagradas no número seguinte do mesmo artigo, por via dos anexos IV e V ao Decreto-Lei 93/90 ( o primeiro define quais as acções insusceptíveis de prejudicar o equilíbrio ecológico das áreas integradas na REN; o segundo estipula os requisitos que essas acções devem cumprir), que necessitam de autorização ou comunicação prévia à comissão de coordenação e desenvolvimento regional competente, consoante o que for exigido no caso. Para além disso, estão ainda excluídas do âmbito do artigo 4.º, n.º 1 do Regime da REN as situações que se insiram numa das quatro alíneas do artigo 4.º, n.º 3, onde se salienta a alínea c), que exceptua as acções que visem realizar um interesse público relevante, devidamente reconhecido pelos membros respectivos do Governo; do mesmo modo, a alínea b) do mesmo artigo faz excepção quanto a instalações prisionais ou destinadas a garantir a defesa nacional.
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