INTRODUÇÃO
Nas próximas páginas irei fazer uma abordagem sobre a relação que se estabelece entre o Direito Penal e o Direito do Ambiente, os crimes ambientais previstos na legislação portuguesa e, finalmente terminarei com uma avaliação sobre a necessidade de tutela penal do ambiente.
O Ambiente é uma realidade preexistente ao Direito. Desde cedo que o Homem manipula o ambiente de acordo com as suas necessidades, situação que assumiu um especial significado com a Industrialização. Nas últimas décadas começou a surgir a consciência da dimensão devastadora que a acção humana pode assumir no meio ambiente, assim como a precariedade de determinados recursos que a Natureza nos coloca à disposição. É aquilo a que a generalidade da doutrina designa por “sociedade de risco”.
Os crimes ambientais referidos pela legislação penal portuguesa são hoje o crime de incêndio florestal (274.º Código Penal); o crime de danos contra a natureza (278.º CP); o crime de poluição (279.º CP); e o crime de poluição com perigo comum (280.º CP), os quais desenvolverei mais adiante.
De seguida procurarei desenvolver a problemática da tutela penal do ambiente: saber se, e em que medida valerá a pena o Direito Penal do Ambiente.
I. TUTELA PENAL DO DIREITO DO AMBIENTE
Hoje em dia, é inquestionável a tutela penal do direito do ambiente, pois desde as alterações introduzidas ao Código Penal na revisão de 1995, que estão juridicamente previstos os crimes de danos contra a natureza (278.º CP) e de poluição (279.º CP). Trata-se de verdadeiros crimes ecológicos por protegerem directamente o ambiente, independentemente do apuramento de qualquer perigo ou lesão para os bens referentes à pessoa ou património do indivíduo.
Esta tutela penal do Direito do Ambiente, tem como causa, como atrás se mencionou, a consciencialização de uma sociedade de risco.
A. O AMBIENTE ENQUANTO BEM JURÍDICO
Penso que será pacífico a qualificação do Ambiente enquanto bem jurídico. Citando o Professor Figueiredo Dias, “bem jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo reconhecido como socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”. O Ambiente relacionado com a sua dimensão natural (água, solo, ar, som, fauna, flora), constitui pois a manifestação de um interesse da comunidade e, individualmente, de cada um de nós, na preservação e qualidade desse estado de coisas.
O Ambiente é, desde logo, um bem jurídico com tutela constitucional, no art. 66.º CRP. Mas o mesmo não é desprezado por outros ramos do direito, que concretizam este princípio e direito fundamental ao Ambiente, como o Direito Administrativo, o Direito Fiscal, e o próprio Direito Penal.
B. O CRIME DE INCÊNDIO FLORESTAL
O crime autónomo de incêndio florestal passou a estar penalmente consagrado com a entrada em vigor da Lei 59/2007, no art. 274.º do Código Penal. Até aí, os incêndios florestais, que todos os anos, assombram o nosso país, só podiam ser incriminados, com base nos termos do art. 272.º CP (“incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas”). Isto importava a necessidade acrescida de provar o requisito da criação de perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Faltando a prova deste requisito, não seria possível a incriminação daquele que lançasse fogo à floresta. Ou seja, antes de 2007, o crime de incêndio florestal, não era verdadeiramente um crime ambiental autónomo, na medida em que, o bem jurídico “ambiente” só era penalmente protegido, por via reflexa, através da tutela de bens como a vida, integridade física ou património de valor elevado, que fossem ameaçados ou lesados, com a acção de incêndio. Actualmente, dispensa-se a prova desse requisito, no art. 274.º/1 que dispõe: “Quem provocar incêndio em floresta, mata, arvoredo ou seara, próprias ou alheias, é punido com pena de prisão de um a oito anos”. No art. 274.º/2 enumeram-se circunstâncias, que, no contexto do crime definido no n.1, agravam a moldura penal que vai de 3 a 12 anos. Agora pode dizer-se efectivamente, que o Ambiente, e em especial as florestas portuguesas, gozam de dignidade penal, uma vez que são directa e autonomamente protegidas.
C. O CRIME DE DANOS CONTRA A NATUREZA
O crime de danos contra a natureza encontra-se previsto no art. 278.º CP desde 1995. Também este é um crime ambiental autónomo, pois, para haver consumação do crime não se exige a prova da criação imediata de qualquer perigo, ou risco para o homem.
O Professor Gomes Canotilho qualifica-o como um crime de desobediência qualificada pela ocorrência de um dano ambiental. Ou seja, para que o agente possa ser punido por este crime tem de desrespeitar disposições legais ou regulamentares que tutelem os bens aqui referidos, e ainda deve ocorrer um dano ecológico, o qual consiste na eliminação de exemplares da fauna ou flora ( 278.º/1/a), destruição do habitat natural (278.º/1/b), ou ainda, na afectação grave dos recursos do subsolo (278.º/1/c). Dano ecológico para efeitos de implicar a incriminação prevista nesta norma, é todo o comportamento que se traduza, necessariamente, numa destas manifestações.
D. O CRIME DE POLUIÇÃO
O crime de poluição goza de consagração legal no art. 279.º CP. Também este é um crime ambiental autónomo.
Pela mesma ordem de ideias definidas no crime anterior, também quanto a este crime o Professor Canotilho atribui a natureza de desobediência qualificada pela ocorrência de um dano ambiental. A desobediência às “disposições legais e regulamentares” não se bastam por si, pois, para haver crime é necessário que haja efectiva poluição da água, dos solos do ar, e sonora (279.º/1).
Uma questão que aqui se pode colocar é o entendimento a preferir do significado de “poluir”. Apesar de não se encontrar definido o sentido da expressão “poluir” em direito penal, existe um entendimento comummente aceite entre a comunidade, em geral. Ora, em nome do princípio da legalidade em Direito penal, devemos não só fazer apelo a este entendimento comum, como também, se dúvidas houver, recorrer à Lei de Bases do Ambiente, particularmente, à definição de poluição, constante do art. 21.º. Ou seja, devemos entender como significado de “poluir”, no âmbito do art. 279.º CP, toda a acção ou actividade que afecte negativamente “a saúde, o bem-estar e as diferentes formas de vida, o equilíbrio e a perenidade dos ecossistemas naturais e transformados, assim como a estabilidade física e biológica do território”.
E. O CRIME DE POLUIÇÃO COM PERIGO COMUM
Consagrado no art. 280.º CP, este crime consiste nas condutas definidas no art. 279.º, mas em relação ao qual se exige um requisito adicional que é o de prova da criação de um perigo para a vida ou integridade física de outrem. Ou seja, já não se trata aqui de um crime ambiental autónomo, pois aqui faz-se depender a incriminação de um real perigo para o homem, para além do dano ambiental. Por aqui se compreende que a moldura penal prevista por esta norma, seja superior à prevista no art. 279.º.
O professor Canotilho, refere que a partir desta norma o ambiente é apenas tutelado de forma mediata. Opiniões mais radicais consideram que o ambiente não é sequer tutelado com esta previsão, pois o que se pretende tutelar efectivamente é a vida e integridade física da pessoa.
II. JUSTIFICAÇÃO DA INTERVENÇÃO PENAL NO DIREITO DO AMBIENTE
Esta é uma questão bastante discutida na doutrina portuguesa. Trata-se de saber se valerá a pena ou se será mesmo necessária a previsão penal de certos comportamentos lesivos do bem jurídico “ambiente”.
Essencialmente dois tipos de valores se confrontam nesta sede. Por um lado, o princípio da subsidiariedade do Direito penal, nos termos do qual este ramo do direito - por implicar as mais fortes restrições dos direitos, liberdades e garantias - , apenas deverá intervir, quando os restantes ramos do direito (leia-se o direito administrativo, o direito fiscal, o direito civil, ou o direito da mera ordenação social) não permitirem razoavelmente dar uma resposta ao problema. Por outro lado, o surgimento da “sociedade de risco” que reclama uma protecção mais forte do bem jurídico “ambiente”.
A. DIREITO PENAL SIMBÓLICO
Alguns autores entendem que este movimento de neocriminalização de comportamentos lesivos do ambiente, pode dar origem ao fenómeno a que atribuem a designação de Direito penal simbólico. Quer isto dizer que o direito penal intervém, movido por boas intenções, prevendo comportamentos e penas que só ocasionalmente, e a título de exemplo serão efectivamente preenchidas. O direito penal falha, deste modo, na sua pretensa função de prevenção geral, uma vez que sai abalada a confiança que a comunidade tem (e deve ter) na efectividade do mesmo. Gera-se um perigoso sentimento de frustração na comunidade jurídica. E desta frustração ao desrespeito pelas normas penais, dista um pequeno passo. Depressa a comunidade se apercebe da inutilidade de se conformar ao direito, na ausência de consequências jurídicas efectivas.
B. A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL
Nesta sede menciono a posição do Professor Paulo Sousa Mendes, nos termos da qual defende a necessidade de intervenção penal em certos domínios ambientais, mas impondo cuidado na técnica legislativa usada, que deverá ser rigorosa, recorrendo a conceitos o mais possível determinados, para que possa haver uma segura previsibilidade dos comportamentos e com efectiva estatuição dos mesmos, sob pena de nos acharmos enredados no seio do direito penal simbólico, a que anteriormente fiz alusão.
É portanto neste contexto que o ilustre Professor assume uma posição francamente crítica da técnica legislativa usada pelo art. 278.º, questionando, a título de exemplo, o quantum necessário na subtracção de espécies da fauna ou flora, para se considerar preenchido este tipo legal de crime. Trata-se pois de conceitos indeterminados, na óptica do professor os quais não são compatíveis com o princípio da legalidade e da segurança jurídica em direito penal.
Por outro lado, Professor Sousa Mendes elogia a previsão normativa do art. 279.º. A actividade de poluição constitui uma ameaça para a bioesfera, sendo passível de assumir repercussões na esfera individual de cada um de nós. Todavia, entende que o conceito usado pelo legislador (“poluição”) não é o mais feliz, porque dotado de uma certa ambiguidade. De iure condendo, defende a consagração de um tipo criminal de “implemento não autorizado de instalação industrial”, pois considera que uma parte fundamental das poluições registadas no nosso país, advém deste tipo de actividades. Um outro crime que reclama previsão penal seria, segundo o Professor, o que condenasse comportamentos especialmente graves de funcionários com competências relacionadas com a protecção do ambiente.
Paulo Sousa Mendes sublinha ainda que a importância assumida por um bem jurídico (como o ambiente) não pode constituir motivo suficiente para se proceder à criminalização de condutas, mesmo quando essa importância advém de consagração constitucional (66.º CRP), isto porque, nas suas palavras “a Constituição não tem legitimidade para impor ao legislador ordinário a criminalização de condutas”. Em sentido contrário, entende o Professor Figueiredo Dias, que a necessidade de intervenção do direito penal pode razoavelmente retirar-se da dignidade constitucional do bem jurídico ambiente.
C. POSIÇÃO ADOPTADA
Em primeiro lugar, quero sublinhar que considero pertinente a questão associada ao direito penal simbólico. Efectivamente concordo que uma tendência incriminadora desmesurada e pouco rigorosa (designadamente no uso de conceitos pouco determinados na previsão normativa) comporta efeitos inquestionavelmente nefastos. Será muito difícil ou quase impossível chegar a uma incriminação efectiva de alguém, pois os comportamentos previstos pela norma penal não são detectáveis com segurança. A norma penal não passará, nesse caso, de letra morta. Inevitavelmente isto degradará a confiança da comunidade na efectividade do Direito Penal. Por outro lado, mas também no mesmo sentido aponta também o princípio da intervenção mínima do direito penal, segundo o qual, a regulação penal dos comportamentos só se justificará, quando outros ramos do Direito não permitirem adequadamente dar uma resposta aos problemas da sociedade de risco. É nesta medida, que defendo que a tutela penal do Ambiente deverá ser muito cautelosa e obedecer a critérios de efectiva necessidade e rigor. Não defendo pois, a total abstenção do Direito Penal em matéria de ambiente. Entendo que o mesmo se deve circunscrever aos problemas ambientais e ecológicos mais graves e de verificação mais frequente na comunidade. São comportamentos mais graves, por exemplo, as práticas lesivas do ambiente levadas a cabo (directa ou indirectamente) pelas pessoas colectivas (como as grandes empresas e indústrias). E aqui principalmente se justifica a intervenção do direito penal, porquanto a responsabilidade meramente civil ou fiscal (com indemnizações, ou agravamento de impostos) não são suficientes para fazerem funcionar o mecanismo de prevenção geral deste tipo de crimes. Relembro que se trata, muitas vezes, de empresas com elevado poder económico, e que, por isso, consideram irrelevante os custos associados à responsabilidade civil, face aos proveitos obtidos com as suas actividades lesivas do ambiente. Outro exemplo de comportamentos graves é dado pelos incêndios florestais de mão criminosa, que anualmente devastam o país, pelo que aplaudo a consagração penal do crime previsto no 274.º.
CONCLUSÃO
A sociedade de risco, com todas as consequências e impactos negativos que assume no meio ambiente, reclama uma intervenção penal nesta área. Todavia, deverá ser sempre uma intervenção controlada e limitada por critérios de necessidade.
O Direito Penal deve ater-se aos comportamentos mais graves e perigosos da sociedade de risco, como os incêndios florestais e as actividades produtivas das grandes empresas que, paralelamente comportam lesões importantes ao ambiente.
Deve evitar-se técnicas legislativas que façam uso de conceitos indeterminados que consequentemente façam nascer a dúvida de quais serão efectivamente os comportamentos incriminados, à luz da sua previsão legal.
No fundo, deve ter-se a consciência das limitações inerentes ao Direito Penal; isto é, que o mesmo não pode ser visto como a cura de todos os males numa sociedade, sob pena de estarmos a retirar-lhe a importância que, efectivamente, deve assumir.
BIBLIOGRAFIA
Pereira da Silva, Vasco; Lições de Direito do Ambiente, 2002
Figueiredo Dias, Jorge de; Comentário conimbricense ao Código Penal, Tomo II, 2001
Sousa Mendes, Paulo; Vale a pena o Direito Penal do Ambiente, 2000
Palma, Fernanda; Direito Penal do Ambiente, 1994
Marque, Pedro M.; Crimes Ambientais e Comportamento Omissivo, Relatório de licenciatura, 1998.
Gomes Canotilho, José Joaquim; Introdução ao Direito do Ambiente
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