“ É um contrasenso considerar que a avaliação de impacte ambiental é tão importante, tão importante que deve dar lugar a um procedimento especial e, logo a seguir, considerar que tão faz que ela tenha lugar, ou não, porque o resultado é o mesmo”. Foi esta a forma, frontal e resumida, escolhida pelo Professor Vasco Pereira da Silva1, para abordar criticamente a questão do deferimento tácito, previsto hoje pelo legislador nacional no art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro, no âmbito do procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA).
No procedimento de AIA, chegados à fase da Decisão que consta da Declaração de Impacte Ambiental (DIA), que já foi proposta pela Comissão de Avaliação (CA) à Autoridade de AIA e por esta enviada ao Ministro responsável pela área do Ambiente (artigos 16.º/ 1 e 2, 17.º e 18.º/ 1), é necessário, para que se encerre este procedimento iniciado com a elaboração do Estudo de Impacte Ambiental (EIA), (ou com o PDA), que seja proferida DIA no prazo legalmente estabelecido, art.º 18.º/ 1. Porém o sistema possui uma “válvula de escape” para os casos em que a Administração fica inerte ou de braços cruzados assistindo passivamente ao decorrer do prazo previsto por lei para se pronunciar, omitindo qualquer tipo de conduta . Nestes casos, em que a Administração não aprova (DIA favorável ou condicionalmente favorável), nem chumba (DIA desfavorável) um projecto, o prudente legislador resolveu dotar a malha legística de um mecanismo que permite ao particular não ficar em posição de desvantagem, numa situação em que é a Administração que não cumpre o dever de actuação, visto que na normalidade dos casos tal omissão impediria o particular de ver satisfeito o seu direito ou interesse. Embebido pela máxima “in dubia pro actione”, decide estabelecer que nestes casos, o silêncio da Administração é entendido como deferimento tácito, o que não é mais do que um “assim seja” à vontade ou interesse do proponente.
Deferimento tácito!. O Professor Freitas do Amaral2 define o “acto tácito positivo” como: “perante um pedido de um particular, e decorrido um certo prazo sem que o órgão administrativo se pronuncie, tendo o dever jurídico de o fazer, a lei considera o pedido satisfeito. Aqui o silêncio vale como manifestação tácita da vontade da Administração num sentido positivo para o particular”. Entende o ilustre Professor que a verdadeira natureza do deferimento tácito, do 108.º CPA, é uma ficção legal de acto administrativo. “O acto tácito não é um verdadeiro acto administrativo, mas para todos os efeitos jurídicos tudo se passa como se fosse”. O deferimento tácito não é verdadeiro acto administrativo porque na maioria dos casos não há nele um acto jurídico, não há uma conduta voluntária, porque a lei prescinde dela. Porém tudo se passa como se o deferimento tácito fosse um verdadeiro acto administrativo. Pode ser interpretado e integrado nos termos gerais, pode ser executado administrativamente e se for caso disso, pode ser objecto de todos os actos secundários previstos na lei (revogação, suspensão, modificação e confirmação), produzindo todos os efeitos jurídicos típicos do acto expresso. Não cabendo, nesta sede, fazer uma incursão pela figura legal do deferimento tácito, não podemos deixar de fazer notar que para outros autores o deferimento tácito não é uma ficção legal de acto administrativo, do qual decorrem todos os efeitos que teriam decorrido se a Administração se tivesse voluntariamente pronunciado. Do ponto de vista de André Gonçalves Pereira3, não havendo acto voluntário no deferimento tácito este não pode ser considerado um acto administrativo, mas só um pressuposto do recurso contencioso. As consequências que podem provir da adopção de uma ou de outra doutrina são absolutamente distintas. Quando aplicadas ao art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro, a doutrina que vê no deferimento tácito um pressuposto de recurso contencioso concebe-o como uma autorização, que terá de preencher outros requisitos, ao particular para recorrer junto da Administração com a finalidade de reivindicar desta o cumprimento do dever jurídico de actuação que sobre ela impende no caso concreto; já a doutrina que vê no deferimento tácito uma ficção legal de acto administrativo idealiza-o como um “nihil obstat” ou um “apadrinhamento” da pretensão do particular, neste caso proponente.
Juntos nesta peleja, tanto o Professor Freitas do Amaral como o Professor Vasco Pereira da Silva consideram que nos casos de deferimento tácito existe uma ficção legal de acto administrativo favorável ao particular, que não servirá para “abrir a porta” do recurso contencioso, mas fundamentalmente para remover do seu caminho o obstáculo, em que se tornou a Administração inerte, ao exercício do seu direito. Por outras palavras poderíamos dizer que em todas as situações em que o art.º 19.º é aplicado ao caso concreto, a Administração “fecha os olhos” e carimba o projecto do proponente com o selo favorável ao Ambiente, não tendo sequer emitido um juízo real e concreto sobre as consequências possíveis que a implementação da proposta do proponente poderá vir a ter no local onde será edificado.
O grande problema que está em cima da mesa, não passa pelos casos em que o deferimento tácito se dá ainda dentro do procedimento administrativo, dado que aí o seu efeito é exclusivamente intraprocessual. O cerne do problema é atingido quando a omissão de conduta da Administração acontece numa fase do procedimento em que o efeito do deferimento tácito terá consequências extraprocessuais, podendo-se desse modo concluir que a Administração consciente ou inconscientemente se absteve de avaliar uma situação que poderá vir a ter repercussões na esfera jurídica de terceiros. É exactamente nesta situação em que nos coloca o art.º 19.º. No universo infantil dir-se-ia que, olhando na globalidade para o Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro, o art.º 19.º é o patinho feio, ou seja, a contradição de todo o regime jurídico em que se encontra inserido. Tudo isto porque da análise do texto da Lei, fica a clara certeza de que a finalidade da Avaliação de Impacte Ambiental é a de individualizar a apreciação das consequências ecológicas de uma decisão para que a Entidade Licenciadora possa, fazendo uso da sua visão de conjunto, tomar a decisão mais adequada no procedimento autorizativo global. O que se pretende obter com o procedimento de AIA é, principalmente ao abrigo do Princípio da Prevenção, conseguir por meio de um juízo de prognose, aferir a viabilidade para o ambiente de uma decisão da Administração sobre um projecto apresentado por um proponente. Do que até agora foi dito conclui-se que é por meio do procedimento de AIA, que culmina com a emissão de DIA, que a Administração aprecia efectivamente a adequação de uma pretensão de um particular com a protecção que tem de ser conferida ao Ambiente. Nesse caso a DIA é a conclusão do juízo elaborado e pesado pela Administração para o caso concreto, depois de ponderados todos os factores relevantes, art.º 2.º g) do Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro.
Da conjugação da apreciação feita sobre o conceito e natureza do deferimento tácito com o conteúdo e função da DIA, a conclusão a tirar não pode ser outra senão a de reconhecer que no deferimento tácito, previsto no art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro, existe na realidade um acto administrativo que produz todos os seus efeitos, mas não uma verdadeira DIA, visto que a Administração pura e simplesmente não procede a qualquer juízo sobre a repercussão ambiental que poderá ter aquele projecto em concreto no meio em que vai ser inserido. Estamos assim numa situação delicada em que há a possibilidade, certamente reduzida, de o procedimento de AIA ser, não uma arma de defesa do Ambiente mas, uma arma apontada para o Ambiente.
Da análise da Directiva 85/337/CE, e das restantes Directivas que ao longo do tempo vieram alterar, actualizar e completar o seu conteúdo, fonte de vida do Decreto-Lei n.º 197/2005 de 8 de Novembro que veio dar uma nova redacção ao Decreto-Lei n.º 69/2000 de 3 de Maio que por sua vez alterou o primogénito Decreto-Lei n.º 186/90, de 6 de Junho, fica patente a imperiosa necessidade de a Administração de cada Estado-Membro adoptar, expressamente, uma posição de autorização ou de proibição, após a devida investigação e estudo do projecto proposto no âmbito do procedimento de AIA. Mais directa é a jurisprudência do Tribunal de Justiça no Processo C-230/00, Comissão contra Bélgica:
14. A este respeito, deve recordar-se que o Tribunal de Justiça declarou, a propósito da Directiva 80/68, que esta «exige que seja sempre adoptado, após cada investigação e atendendo aos seus resultados, um acto expresso, de proibição ou autorização» (acórdão de 28 de Fevereiro de 1991, Comissão/Alemanha, C-131/88, Colect., p. I-825, n.° 38).
16. Resulta desta jurisprudência que uma autorização tácita não pode ser compatível com as exigências das directivas visadas pela presente acção, uma vez que estas prevêem quer, no que respeita às Directivas 75/442, 76/464, 80/68 e 84/360, mecanismos de autorizações prévias quer, no que respeita à Directiva 85/337, processos de avaliação que precedem a concessão de uma autorização. As autoridades nacionais são, por conseguinte, obrigadas, nos termos de cada uma destas directivas, a examinar, caso a caso, todos os pedidos de autorização apresentados.
18. Nestas condições, deve concluir-se que, ao não adoptar as medidas legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para transpor integralmente as Directivas 75/442, 76/464, 80/68, 84/360 e 85/337, o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 9.° da Directiva 75/442, 3.° , 4.° , 5.° e 7.° da Directiva 76/464, 3.° , 4.° , 5.° , 7.° e 10.° da Directiva 80/68, 3.° , 4.° , 9.° e 10.° da Directiva 84/360, bem como 2.° e 8.° da Directiva 85/337. (itálico e sublinhados nossos)
Tudo visto, que solução?
Para o Professor Vasco Pereira da Silva4 a solução para este problema passa por ver no art.º 19.º/ 5 uma atribuição de competência, para avaliar ou ponderar a dimensão ambiental da actividade proposta, à Entidade Coordenadora do Procedimento Autorizativo Global (Entidade Licenciadora), dado que não houve acto de avaliação anterior nem o deferimento tácito vincula a decisão a tomar por esta entidade no procedimento global de autorização. Esta Entidade terá em consideração o EIA e incluirá na decisão todos os elementos disponíveis que componham a DIA, art.º 17.º. Ou seja, sob pena de nulidade da decisão a tomar pela Entidade Licenciadora no final do procedimento global, visto que para o distinto Professor não existiu acto de avaliação, 20.º/ 3, esta terá de desempenhar o papel de Ministro responsável pela área do Ambiente, ainda que para isso não tenha atribuições e muito menos competência técnica, e emitir no acto de autorização um juízo final sobre o procedimento de AIA. No fundo aquilo que temos é uma DIA que vai em parte mascarada de decisão final do procedimento autorizativo global. Toda esta tese é sustentada pela ideia de uma interpretação do art.º 19.º/ 5 conforme à CRP que manda observar, entre outros, o Princípio da Prevenção, que no caso seria reiteradamente violado.
Da nossa parte, discordando do entendimento do distinto Professor, preferimos olhar para a questão de outro modo. Com o devido respeito, não se pode dizer que o deferimento tácito é uma ficção legal de acto administrativo e que por isso detém todos os efeitos deste, e depois vir afirmar que no caso do deferimento tácito no procedimento de AIA, na realidade a Administração não se pronunciou por meio de um juízo voluntário e como tal não houve uma verdadeira avaliação do projecto em concreto, sendo então necessária uma intervenção da Entidade Licenciadora que dê conteúdo a este acto de deferimento. Em nosso entender a coerência teria obrigado a reconhecer que numa situação de deferimento tácito, temos verdadeiramente um acto administrativo que não necessita de confirmação de espécie alguma. Porém, ao olhar para o problema desta forma, correríamos o risco de ver Portugal entrar em situação de incumprimento das obrigações de que está incumbido pelas directivas comunitárias.
Em conclusão entendemos que o art.º 19.º/ 5 não é mais do que uma solução de compromisso, em que o legislador português não quer prescindir da tutela que deve ser dada aos particulares frente à Administração, concedendo-lhes a prerrogativa do deferimento tácito, mas ao mesmo tempo não pretende entrar em situação de incumprimento do direito Comunitário, e para isso atribui competência à Entidade Licenciadora, para ajuizar de processo que decorreu fora da sua alçada, que enche de conteúdo expresso o deferimento tácito anteriormente emitido. O legislador Português pretende encaixar na lei uma solução que agrade a “gregos e troianos”, esquecendo-se de agradar ao ambiente, que além de ser o principal visado no meio de todo este processo é a razão pela qual foi instituído o regime do procedimento de AIA. Na impossibilidade de conseguir o melhor de dois mundos aconselhamos o legislador a procurar sempre a solução legal que torne mais verde o mundo em que se aplica o procedimento de AIA.
1 Pereira da Silva, Vasco – Verde cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Almedina 2002, pp. 166;
2 Freitas do Amaral, Diogo – Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina 2002, pp. 326 e ss.;
3 Gonçalves Pereira, André – Erro e ilegalidade no acto Administrativo, pp.85 e ss.;
4 Pereira da Silva, Vasco – Verde cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Almedina 2002, pp. 167.
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