Direito penal do ambiente
João Miguel Martins Santareno Duque Martinho
2008
Índice
- Introdução histórica
- Fontes e conteúdo do direito penal do ambiente
- Definição do bem jurídico tutelado
- Justificação da tutela penal
- Acessoriedade administrativa
- Configuração do tipo de crime
- Problemas de imputação nos crimes ambientais
- O licenciamento de actividades poluentes
- Jurisprudência portuguesa na matéria
- Conclusão
- Bibliografia
Introdução histórica
O ambiente é um assunto na ordem do dia. A comprovação dos efeitos lesivos do progresso cientifico e tecnológico e do desenvolvimento demográfico e industrial sobre a natureza é hoje uma preocupação à escala mundial. Não que esses efeitos não se verificassem já antes, mas hoje é notória a sua influência na alteração da própria imagem da natureza, e assim são actualmente considerados directamente lesivos ao ambiente ecológico em que vive e opera o homem.
A primeira reacção dos ordenamentos jurídicos contra a poluição, foi, historicamente, as acções de natureza civil, assim o acto de poluir era considerado ofensivo de um qualquer direito de propriedade atingido por esse acto poluidor, estas normas eram assim garantias de interesses privados ou públicos particulares, o acto era ilícito na medida em que houvesse dano pelo “indivíduo ao indivíduo”. Acresce a esta insuficiência o facto de as normas terem um carácter meramente repressivo e não, como seria desejável, preventivo.
A perturbação ambiental não era assim considerada como um fenómeno danoso para a colectividade, mas era apenas entendido como tal na medida em que afectasse directamente direitos de propriedade vizinhos afectados por esses actos poluidores.
Pouco a pouco, esse entendimento foi-se alterando, formulando-se novas formas específicas de tutela ambiental. Em França e Inglaterra foram promulgadas legislações especiais sobre industrias insalubres e perigosas, na Alemanha uma alteração introduzida ao código industrial pela Lei de 22 de Dezembro de 1959 continha disposições sobre emissões industriais poluentes. Todavia a valoração continuava a não ser sobre a poluição ambiental objectivamente considerada mas sim preocupava-se em combater certas e determinadas fontes poluidoras, embora tivesse tido o mérito de deixar a perspectiva meramente privada para assumir uma moldura pública.
A primeira reacção normativa radical a estes fenómenos data de 1956, em Inglaterra, com a promulgação do Clean Air Act, pioneira na Europa, que considera a poluição do ar, em si mesma, como um fenómeno autónomo de degradação ambiental tornando irrelevante a sua fonte de proveniência, o que torna este acto num símbolo da mudança de perspectiva sobre esta área, assim, a atenção da lei passa das fontes aos factores poluidores, exemplo seguido pouco depois por outros países europeus. Incidindo o objecto dessas normas sobre o dano por si só, sem ser necessário o tal nexo de causalidade entre o acto poluidor e o dano para outra pessoa, a protecção da degradação ambiental passa a ser a finalidade da norma.
Neste novo contexto, a administração pública ganha importância ao ser a entidade competente para emitir normas regulamentares e de fiscalizar as emissões poluentes, criando em alguns casos, organismos específicos para o efeito. Neste quadro ganha novo sentido o direito penal do ambiente, a tutela administrativa passa a ser reforçada pela sanção penal, tendo sido o código penal italiano um dos pioneiros na matéria, nomeadamente na área da poluição hídrica.
Caso português
Entre nós, coube ao Professor Figueiredo Dias, em 1978, a primeira consideração na doutrina jurídico-penal sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente. Partindo este autor da ideia de que “um ambiente são constitui um valor fundamental da comunidade e uma condição indispensável ao livre desenvolvimento da personalidade do individuo na comunidade”, considera que as normas regulamentadoras de proibição e imposição, de carácter contra-ordenacional não são suficientes para reagir contra condutas que lesam de forma intolerável interesses socialmente relevantes, como tal será necessário que a par dessas normas regulamentadoras, hajam outras, de carácter penal, que sancionem criminalmente a inobservância das mesmas.
Segundo este entendimento, os delitos ecológicos deveriam ser construídos como tipos de crime que conferissem protecção aos bens jurídicos ambientais, como tal, todas as pessoas, individuais ou colectivas, que desobedecessem ás imposições em matéria de ambiente deveriam ser punidas nesta sede.
No código penal de 1982 não surgiu qualquer novidade nesta matéria, com excepção do art. 269 que estabelecia a responsabilidade penal de pessoas que contaminassem águas destinadas a consumo, como tal não se tratava de conferir protecção a um bem jurídico ambiental mas sim a de proteger a saúde dos indivíduos, assim considerados.
Embora, segundo o mesmo autor, a Constituição de 1976 contivesse já no seu art. 66º a declaração de que “Todos têm direito a um ambiente humano, são e ecologicamente equilibrado”, o que em si mesma não implica uma imposição constitucional de criminalização de práticas anti-ambientais ( opinião partilhada pelo Professor Paulo de Sousa Mendes ) mas sim uma imposição no sentido de se proteger esses bens jurídicos, legitimando, caso seja necessário, a criação de crimes ecológicos.
Neste contexto surge a introdução no código penal, com a reforma de 95, de dois crimes ecológicos, um no art. 278º relativo a “danos contra a natureza”, e outro no art.279º relativo à poluição.
Fontes e conteúdo do Direito penal do ambiente
Actualmente a legislação penal em matéria de ambiente é repartida entre a Constituição, o código penal, legislação penal extravagante ( designadamente a Lei da caça que confere pena de prisão à violação de alguns preceitos aí existentes ) e, para alguns, fontes de origem comunitária.
Em primeiro lugar, o art.66º da CRP sob a epígrafe “Ambiente e qualidade de vida”, encontra-se sistematizado nos direitos de carácter económico-social, assim encontra-se legitimada ( não obrigada ) a criação de crimes ecológicos:
Artigo 66.º
( Ambiente e qualidade de vida )
1. Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.
O código penal, nos arts. 278º e 279º dá mostras da preocupação do legislador penal em matéria de ambiente, dando assim resposta aos desafios de uma sociedade de risco, embora seja criticado pelas inúmeras imperfeições de técnica legislativa.
Artigo 278.º
Danos contra a natureza
1 — Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições:
a) Eliminar exemplares de fauna ou flora em número significativo ou de espécie protegida ou ameaçada de extinção;
b) Destruir habitat natural protegido ou habitat natural causando a este perdas em espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas ou em número significativo;
c) Afectar gravemente recursos do subsolo; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 — Quem comercializar ou detiver para comercialização exemplar de fauna ou flora de espécie protegida, vivo ou morto, bem como qualquer parte ou produto obtido a partir daquele, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 120 dias.
3 — Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.
Artigo 279.º
Poluição
1 — Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições:
a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;
b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ou
c) Provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza; de forma grave, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 — Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.
3 — Para os efeitos dos números anteriores, o agente actua de forma grave quando:
a) Prejudicar, de modo duradouro, o bem -estar das pessoas na fruição da natureza;
b) Impedir, de modo duradouro, a utilização de recurso natural; ou
c) Criar o perigo de disseminação de microrganismo ou substância prejudicial para o corpo ou saúde das pessoas
Definição do bem jurídico tutelado
Chegados a esta fase, importa definir qual será o bem jurídico tutelado pelos crimes ecológicos. A opinião do Professor Figueiredo dias é de que o direito penal do ambiente tutela os bens jurídicos ambientais como tal, e não necessariamente quando a lesão desses bens esteja correlacionada com a violação de outros direitos ou interesses de pessoas. Assim protege o ambiente em si mesmo, como fim último.
Como tal, afasta-se este autor de uma visão “ecocêntrica” do bem jurídico protegido, visão essa que pretende atribuir à natureza direitos próprios e efectivos, e da mesma maneira, discorda de uma ideia “antropocêntrica” do bem jurídico ambiental, que liga a ideia de bem jurídico, apenas, e na medida, em que existam interesses individuais afectados.
Como tal, desliga-se da teoria de que os bens jurídicos ecológicos seriam derivados de bens jurídicos individuais. Antes defende que os bens jurídicos ecológicos devem ser aceites, sem limitações, como autênticos bens jurídicos colectivos, que são caracterizados por se tratarem de bens que “podem ser gozados por todos e por cada um, sem que ninguém deva poder ficar excluído desse gozo”, e será nesta possibilidade de cada um gozar do uso desses bens, que estará o interesse legítimo de cada um na defesa desses bens jurídicos colectivos. Separa desta maneira, a existência de bens jurídicos colectivos relativamente aos individuais, sendo aqueles individuais em relação a estes.
Quanto à opinião do Professor Paulo de Sousa Mendes, este começa por referir que o bem jurídico “ambiente” não pode ser confundido com “pedaços desgarrados da natureza”, quer isto dizer que todas as peças da natureza têm valor, enquanto partes de um todo. Assim bastará a afirmação e constatação de que o homem precisa de proteger o meio ambiente, por uma questão de sobrevivência e utilidade, para automaticamente esse bem ser protegido pelo Direito.
Quanto à titularidade desse direito, ele estará enquadrado na categoria dos direitos difusos, que são direitos que pertencem de forma idêntica a um conjunto indeterminado de pessoas.
Assim, é normal que se tenha passado de uma fase em que o ambiente era protegido enquanto relacionado com lesões de interesses individuais, para uma fase em que se gera grande concordância social sobre o facto de que as ideias de “equilíbrio ecológico”, “continuidade da vida” e “reserva genética” são partes de um todo essencial ao desenvolvimento da humanidade. Todavia não se poderá, nem se pretende nunca chegar a um ponto de protecção absoluta ao meio ambiente, pois, o desenvolvimento económico é também um fenómeno importantíssimo na sustentação do Homem no planeta, distinguindo alguns autores a este propósito em ofensas admissíveis e inadmissíveis ao bem jurídico ambiente. A degradação ambiental é muitas vezes causada por actividades industriais ou tecnológicas, que, também elas, são essenciais ao Homem, assim terá de se procurar uma solução de equilíbrio entre todas estas vertentes ( protecção ao ambiente, interesse privado, funcionamento dos mercados etc. ) através de uma ponderação de custo/beneficio, recorrendo ao conceito de desenvolvimento sustentável.
Justificação da tutela penal
Tendo em conta que ao Direito Penal cabe uma função de ultima ratio da política sancionatória do Estado, cabe nesta sede verificar quais as razões que justificam a tutela penal a certas ofensas ao meio ambiente. O direito penal existe, para, segundo critérios de necessidade e proporcionalidade defender direitos e interesses essenciais. Caberá então reprimir comportamentos que são objecto de uma censura social.
Hoje, o tema do ambiente reveste-se de uma grande relevância e consenso quanto à sua importância para o desenvolvimento sustentável do planeta. De facto, inúmeros alertas dão-nos conta dos, já irreversíveis, danos produzidos pelo homem ao ambiente, de tal maneira que num horizonte de longo prazo poderão pôr em causa a sobrevivência humana. Esta constatação sustenta a idoneidade do direito penal para proteger estes bens jurídicos essenciais.
Quanto ao papel que o direito de mera ordenação social poderá ter neste campo, penso, estarem já ultrapassadas as condições em que este poderia actuar eficazmente contra as agressões, uma vez que os seus meios sancionatórios que têm como ponto central a reparação do dano e a desmotivação do infractor através do prejuízo pecuniário causado pela sanção serão adequados na medida em que considerarmos como relevantes apenas as agressões ao ambiente que se repercutem em violação de outros direitos privados, e já não aquelas que consideram o ambiente como um bem jurídico em si mesmo, digno de protecção, como fim último da norma. Como tal, tendo em conta os fins das penas em direito penal, nomeadamente os fins de prevenção geral e especial, penso que será um instrumento mais adequado à protecção deste bem jurídico no que ao sancionamento diz respeito. É óbvio que uma grande parte da regulamentação e controlo das actividades poluentes tem de se reconduzir ao direito administrativo, pois só a administração dispõe de meios técnicos e humanos preparados para saber em que medida uma actividade é poluente ou não.
Todavia, o que tentamos concluir nesta fase do trabalho é qual a justificação, ou se existe mesmo justificação para a existência de crimes ambientais, mais uma vez refiro que em matéria de sancionamento, o direito de mera ordenação social já não será suficiente, embora seja importante o seu papel noutros aspectos, assim, o direito penal deve ser secundário sim, mas, justifica-se como mecanismo repressivo.
Como tal partilho da ideia do Professor Paulo Sousa Mendes quando refere que o Direito penal não serve para “formar a nova mentalidade ecológica dos cidadãos”, e assim recuso aceitar que essa será a sua legitimação no que ao ambiente diz respeito.
Pelo contrário penso estarem aqui em jogo, interesses essenciais à humanidade que justificam a sua intervenção. Deparamo-nos hoje com gravíssimas ameaças ao ambiente, que não já, mas a longo prazo poderão ter também consequências gravosas para o Homem. Os alertas dados hoje em dia chamam a atenção para efeitos irreversíveis na Natureza em poucos anos.
Assim e como interesse fundamental da sociedade na sua preservação penso justificado a configuração dos delitos ecológicos como verdadeiros crimes. Por um lado, pela gravidade que apresentam, pelas consequências em termos de geração futuras que poderão ter, pelo facto de se verificar que a tutela administrativa não funciona como o desejado, e por outro, por uma questão de necessidade e adequação em face do mal estar social que estes crimes podem acarretar.
Com isto pretendo afastar-me também de fundamentalismos ecológicos, pois como anteriormente referi, não considero que a protecção ao ambiente deva ser absoluta. Penso que o deve ser na medida em que afectar de tal maneira a natureza, que a vida, tal como a concebemos hoje, não ser possível num espaço de médio/longo prazo. Pois, se atentarmos no facto de que o que estamos aqui a proteger ser, em última análise, o bem jurídico vida, futuro, diga-se, encontrar-se-á legitimada a intervenção penal, caso contrário atente-se na contradição entre considerarmos como crime uma ofensa à integridade física, e não considerarmos igualmente crime, actos que, se forem
praticados sucessiva e reiteradamente poderão hipotecar a possibilidade de vida futura no planeta, ou pelo menos, a vida tal como a concebemos hoje.
Considero também que o planeta será o maior e último património da humanidade, e como tal devemos salvaguardá-lo para as gerações futuras o poderem usar e desfrutar como as gerações passadas o fizeram.
Assim, centrando-me agora no desvalor da acção de actos “anti-ambientais”, acho que o bem que se protege é demasiado elevado e importante para se recusar que à sua violação, não seja associado uma sanção de carácter penal.
Em síntese, partindo da ideia de que um “ambiente são constitui um valor fundamental da comunidade e uma condição indispensável ao livre desenvolvimento da personalidade do individuo”, e que além das normas regulamentadoras deverão estar associados a elas sanções de carácter penal como instrumento de protecção de interesses públicos de grande importância, penso inteiramente justificada a sua intervenção para a protecção desses bens jurídicos.
Acessoriedade administrativa
Neste contexto, em que não serei um fundamentalista ecológico por natureza, e como tal, penso ser útil a distinção entre ofensas admissíveis e inadmissíveis ao meio ambiente como critério de aferição de responsabilidades, seja no seio contra-ordenacional, seja no penal, teremos de nos socorrer de entidades ou organismos que ponderem essa gravidade de ofensas. Essa ponderação terá de passar por um equilíbrio entre os diversos interesses em disputa. Essa ponderação não caberá, por certo, ao legislador penal, antes compete ao direito administrativo, e nisto se consubstancia a acessoriedade administrativa neste âmbito.
Daqui se explica o nº 1 do art. 279º que remete a definição dos limites para “disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente”, como tal, em última análise, o crime previsto neste artigo será um crime de desobediência às prescrições emanadas do direito administrativo, e assim, uma norma penal em branco.
Assim, será indispensável a acessoriedade do direito penal face ao administrativo, na medida em que só este último estará vocacionado, formal e organicamente para ter um papel técnico-científico nesta área, adaptando os níveis e formas de poluição ao contexto ambiental e geográfico existente.
Deverá assim este estabelecer os limites máximos permitidos e fiscalizando o seu cumprimento, pois só a administração terá recursos técnicos e humanos preparados para estabelecer tais directivas aos agentes poluidores. Naquilo em que se ultrapassarem esses limites, deverá então intervir o Direito penal para sancionar a violação desses limites máximos.
Esta acessoriedade exigirá uma coordenação reforçada entre os dois ordenamentos, uma vez que em nome da unidade do ordenamento jurídico globalmente considerado, não se permita que uma parte penalize comportamentos permitidos por outra parte. Estará neste contexto o direito penal numa situação de dependência face ao direito administrativo, mais concretamente ao acto administrativo no sentido em que a punibilidade depende da inobservância de limitações estabelecidos nesses actos emanados das autoridades competentes.
Esta acessoriedade administrativa não é vista com bons olhos pela doutrina penalista portuguesa pois a criminalização é feita em função de uma anterior decisão arbitrária da autoridade que emitiu esse acto, podendo originar situações de grave injustiça relativa, mas alguns autores referem também algumas vantagens neste modelo.
Contudo esta acessoriedade será indispensável nesta matéria pelo que o direito penal assumirá aqui um carácter subsidiário e secundário face ao direito administrativo.
Configuração do tipo de crime
Importa neste momento analisar as sugestões existentes na doutrina acerca de qual será a configuração mais adequado para o tipo de crime ambiental.
Como crime de dano ( Souto de Moura )
Estes autores defendem que se trata de um crime de dano, o que nos levanta logo um problema que é o de conseguir demonstrar a responsabilidade criminal dependente do nexo de causalidade entre a actividade e a poluição, em casos em que esse dano não seja notório. Outro problema surge quanto á densificação do conceito de dano, nem sempre facilmente determinável. Assim seria necessário a esta configuração uma definição exacta de dano, nomeadamente a administração quantificar em que limites em que ele existe.
Como crime de perigo concreto ( Maria Fernanda Palma )
Esta autora defende a configuração deste crime como de perigo concreto, designadamente naqueles casos em que o perigo constitui elemento do tipo penal, e isso e referido na norma de forma expressa, cabendo depois ao juiz analisar a sua ocorrência. Esta configuração levanta o problema de se verificar o nexo causal, pois seria necessário após a pratica da conduta “anti-ambiente” que se pudesse aferir a efectiva colocação em perigo do bem jurídico, e também porque essa probabilidade nunca seria suficiente para se ter o grau de certeza necessário a uma condenação penal.
Como crime de perigo abstracto potencial ( Paulo Sousa Mendes )
Concluem por este tipo incriminador por duas razões, a primeira é de que o legislador não menciona expressamente o perigo, pelo que parece ter querido dispensar o juiz da sua averiguação, bastando a mera presunção de que toda a poluição gera riscos para o meio ambiente, a segunda prende-se com uma dificuldade de prova, que se refere à impossibilidade de com um alto grau de probabilidade se afirmar que um certo facto gera riscos para o ambiente, frustrando assim qualquer condenação.
Como crime de desobediência ( Silva Dias, Anabela Miranda Rodrigues )
Assim configurado poder-se-ia pensar que se trataria de um crime em que simplesmente se verificasse a desobediência às normas administrativas que regulam a actividade. Todavia, esta desobediência pretende ir um pouco mais longe e considerar não só a violação da norma mas também implicar um verdadeiro dano para o meio ambiente, assim a sanção penal seria aplicada mediante o preenchimento de dois requisitos cumulativos, o da violação da norma regulamentar administrativa e a comprovação do verdadeiro dano ou lesão ao meio ambiente
Problemas de imputação nos crimes ambientais
Dificuldades na identificação do autor de um crime ambiental
Há casos em que este problema não se levanta, nomeadamente por ser do conhecimento geral e estarem “à vista” de todos as agressões mais comuns contra o meio ambiente.
No entanto não serão essas as verdadeiras actividades poluidoras, principalmente se forem consideradas em si mesmas, isoladamente. O que se pretende verdadeiramente evitar por constituírem verdadeiras agressões serão os comportamentos de massa dessas actividades, actividades essas que dificilmente estarão sob a alçada da aplicação das normas penais ambientais.
Actividades industriais
Serão estas actividades, aquelas que constituem verdadeiros atentados contra o ambiente e não comportamentos individuais, assim considerados. Como principal responsável cumpre indagar sobre a possível imputação criminal a pessoas colectivas de responsabilidades penais no âmbito de actividades poluidoras e degradatórias do meio ambiente.
“O problema da responsabilidade criminal de pessoas colectivas”
Não é admissível em direito penal a possibilidade de responsabilidade penal de pessoas colectivas, este facto aliado ao que se disse no ponto anterior ( actividades industriais como principais fontes de poluição ) acarreta a grande limitação que o direito penal encontrará para intervir neste tipo de crimes. O art. 279º refere que a poluição só poderá ser punida como tal se for praticada em desobediência ás normas administrativas, que reflectem essa ponderação sobre o que será poluição “em medida admissível”, nas palavras do antiga redacção do preceito. Ora, será difícil a uma qualquer pessoa individual praticar actos que excedam esses limites, sendo assim um crime muito mais comum em relação a empresas do que a particulares.
Assim, terá de se limitar o direito penal a punir pessoas singulares, o que levanta problemas já conhecidos na dogmática jurídico-penal de imputação objectiva. Em última análise, se considerarmos como responsável a pessoa que efectivamente comete o acto poluidor no seio de uma indústria poluente, estaremos a esquecer-nos que na maioria das vezes, senão na totalidade, esse acto foi ordenado por um qualquer superior hierárquico, afastando assim a responsabilidade, pelo menos em parte, desse agente. Este facto, aliado à dificuldade na averiguação da pessoa que concretamente ordenou o acto tem como consequência a grande dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de se aferir da concreta responsabilidade jurídico-penal do acto anti-ambiental.
Como se verifica, o direito penal do ambiente terá assim uma forte restrição do seu campo de aplicação, tornando assim este, em certa medida num direito penal simbólico.
O licenciamento de actividades poluentes
Esta será a forma por excelência, a nível do poder coercivo que está no monopólio do estado, de dar execução à sua política ambiental.
Assim, o estado fará depender o exercício de actividades potencialmente poluentes, de um procedimento administrativo que fixará limites e regras técnicas que este considera como indispensáveis numa perspectiva de protecção ao meio ambiente.
Porém teremos de ter em conta que a poluição não será nunca totalmente evitada, cabendo antes a este acto ( administrativo ) licenciar uma determinada actividade que foi objecto de controle e fiscalização por parte das autoridades competentes.
A administração estabelecerá valores limite em que essa poluição será admissível ou aceite, acima destes, serão actividades consideradas proibidas pelo efectivo dano que provocam ao meio ambiente.
Caberá aqui por certo, alguma margem de discricionariedade da administração que poderá por certo pôr em causa a intervenção penal nesta matéria. Contudo configura-se esta forma de execução de política ambiental como acertada, permite uma avaliação e ponderação de interesses conflituantes feita em concreto, e como tal, mais justa.
Contudo não bastará só a emissão destas licenças, precedidas de um processo que avalie de facto o impacto que essa actividade terá, tem de haver também, num momento posterior uma fiscalização regular dessa actividade a fim de averiguar se o que foi pré estabelecido por esse acto administrativo, está efectivamente a ser cumprido.
Caberá então, nesta fase, na minha opinião, e face à violação dessas condições impostas pela administração, o papel do direito penal como sanção pelo incumprimento desses limites, embora, interligado com o Direito de mera ordenação social numa lógica de proporcionalidade, averiguando-se a gravidade da acção cometida. Desvalor que não será fácil de aferir mas que eu penso ser inevitável uma vez que certas lesões ao meio ambiente já não se coadunam com as simples contra-ordenações administrativas, antes merecem uma tutela penal. E assim poderá falar-se de os preceitos inseridos no código penal relativamente ao ambiente serem normas penais em branco, pois são tipos de crimes preenchidos com elementos que cabe ao direito administrativo definir, o que na doutrina penal suscita algumas controvérsias.
Jurisprudência portuguesa na matéria
Queria apontar nesta sede alguns casos julgados nos tribunais portugueses nesta matéria. Começaria por referir que a regra na jurisprudência portuguesa era de tutelar o bem jurídico ambiente de forma indirecta, afastando-se assim da ideia de crimes ecológicos puros.
Assim, este bem jurídico somente era tutelado na medida em que afectasse também direitos particulares dos indivíduos, e não quando o ambiente era lesado em si mesmo.
Exemplo desta constatação é o Acórdão de 29 de Maio de 1985 do tribunal da relação de Coimbra que absolveu os arguidos do crime previsto no então art. 269 do código penal relativo à poluição das águas com base no argumento que este apenas proíbe a contaminação de água destinada ao consumo, e não a poluição por si só, da mesma água, entendimento alvo de discórdias.
Ainda em relação ao mesmo preceito, de referir a sentença do tribunal judicial de Vila do Conde, de 10 de Janeiro de 1990 que condenou os arguidos que ordenaram o lançamento para o rio Ave de elevadas quantidades de substâncias oleosas a vários operários da fábrica Prozol, dando origem à morte de um número indeterminado de peixes, este entendimento é tido como mais adequado ainda que não ideal, uma vez que não relaciona o preceito apenas como protector do ambiente enquanto lesivo de interesses privados, mas também da constituição de um perigo para um bem ( peixes ) que é considerado útil ao Homem. Também o conceito de “animal útil ao Homem” foi objecto de grande controvérsia, sendo de analisar se também os animais “inúteis” ao Homem serão dignos da mesma protecção, daí afastar-se ainda um pouco do entendimento que seria desejável nesta matéria.
Por último, uma decisão considerada como de referência nesta área, dada pela sentença do tribunal judicial da comarca de Coruche, de 23 de Fevereiro de 1990, naquele que foi o caso que ficou conhecido como “o processo das cegonhas”. Deram-se como provados os factos que a arguida possuía três pinheiros mansos na sua herdade que serviam de suporte aos ninhos de um grupo de cegonhas brancas em nidificação, apesar desse facto, a arguida derrubou os referidos pinheiros e por consequência os ninhos foram destruídos, por esse facto foi condenada pela autoria de um crime previsto no art. 18/1/a) da Lei nº30/86 de 27 de Agosto, conhecida como a Lei da Caça, e assim foi punida na pena de oitenta dias de prisão e uma pena de multa e ainda obrigada a reconstruir a situação que havia anteriormente.
Em 1995 com a introdução do novo preceito no código penal passa a ser irrelevante a distinção entre espécies úteis ou não ao homem o que representa uma evolução da tutela penal nesta matéria. Porém, até 2006 não houve qualquer condenação com base na violação do art. 278º, não tendo assim a norma aplicação prática, defeito igualmente apontado aos restantes artigos inseridos no código penal que protegem bens jurídicos ambientais.
Conclusão
1. A protecção jurídica conferida ao ambiente começou por ser entendida como uma protecção dos direitos privados directamente lesados com essa degradação ambiental, ou seja, era uma protecção conferida na medida em que afectasse tais direitos. Mais tarde o bem jurídico ambiente começou a ser entendido como tal, e a finalidade das normas que o protegem deixaram de estar associadas a uma qualquer lesão de outros interesses privados. A reacção começou por ser civil, hoje encontra-se no seio do Direito de mera ordenação social e no direito penal.
2. O bem jurídico ambiente está inserido na categoria dos direitos difusos, como tal pertence igualmente a um grupo indeterminado de pessoas. A sua protecção nunca poderá ser conferida de forma absoluta, pois o desenvolvimento traz consigo, inevitavelmente, agressões ao meio ambiente, e o que se torna necessário aferir nesse contexto é um equilíbrio entre os interesses em conflito, sendo, nesse âmbito, útil a distinção entre ofensas admissíveis e inadmissíveis.
3. A acessoriedade administrativa é inevitável na medida em que a administração é o órgão mais vocacionado e dotado em termos de recursos técnicos e humanos para avaliar e definir quais os limites aceitáveis dessas actividades danosas. Será assim necessária uma coordenação entre este ramo de direito e o direito penal, tendo este, carácter secundário face aquele.
4. Várias são as posições na doutrina quanto à configuração do tipo incriminador, quanto a mim parece-me que a posição do Professor Paulo Sousa Mendes ( crime de perigo abstracto potencial )será a mais indicada, que embora levante problemas de prova, confere um alto grau de protecção ao bem jurídico em causa.
5. A jurisprudência nesta matéria é quase inexistente. De facto, os requisitos necessários à responsabilidade penal, aliada ao facto de as pessoas colectivas não poderem ser responsabilizadas criminalmente e ainda a dificuldade de prova nestas matérias justifica os poucos casos de condenação neste âmbito.
6. Partindo da ideia que o ambiente, ou a qualidade dele, é um elemento essencial à vida humana, e que os alertas dados hoje em dia apontam para efeitos irreversíveis em poucos anos, e considerando que em última análise o bem jurídico que se defende é a vida humana ( futura ), penso inteiramente justificada a intervenção penal em matéria de ambiente, não descartando contudo o direito de mera ordenação social para sancionar também o bem jurídico ambiental.
7. O licenciamento através de actos administrativos precedidos do respectivo procedimento de avaliação de impacto ambiental constitui um precioso instrumento da administração para controlar o exercício de actividades poluentes, sem se descurar, obviamente, a posterior fiscalização e inspecção e, nessa sede, a intervenção penal para eventuais infracções.
Bibliografia
- Estudos Comemorativos do 150º aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, 1995.
- Costa Jr., Paulo José da Costa. Direito Penal Ecológico, Forense Universitária, 1996.
- Sousa Mendes, Paulo. Valerá a pena o Direito Penal do Ambiente?, AAFDL, 2000.
- Tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, 2005.
- A acessoriedade do direito penal face ao direito administrativo nos crimes ambientais, enfoque primordial ao crime de poluição, tese de mestrado, 2005.
- Cruz Gonçalves, Soraya Jossana. Análise crítica da jurisprudência portuguesa em matéria ambiental, tese de mestrado, 2006.
- Campos, Ana Rita Soares Duarte de. O problema da autoria no domínio da criminalidade ambiental, tese de mestrado, 2006.
- Pereira da Silva, Vasco. Verde Cor de Direito. Almedina.
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