A Constituição, no artigo 66º, depois de consagrar o direito de todos ao ambiente e o correlativo dever de o defender, enumerar as tarefas do Estado integradas no objectivo da protecção ambiental (nº2).
Na Lei de Bases do Ambiente, por seu turno, consta do artigo5º nº2 alínea a) uma definição de ambiente: ambiente é ”o conjunto dos sistemas físicos, químicos e biológicos e suas relações e dos factores económicos, sociais e culturais com efeito directo ou indirecto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem”. A inclusão, entre os componentes do ambiente, dos componentes ambientais humanos - a par dos naturais, referenciados no artigo 6.º - não contribui para a clarificação do conceito de ambiente. Com efeito no artigo 17.º/3, indicam-se mais três elementos componentes do ambiente: a paisagem, o património natural e construído e a poluição.
Desde a revisão constitucional 1997, a Constituição dedica ao Urbanismo uma disposição, em conjunto com a habitação: o artigo 65º. Neste artigo, em cuja epígrafe passou a ler-se “habitação e urbanismo”, o urbanismo (ou melhor, a política urbanística) surge como um objectivo a concretizar através da actuação concertada das entidades públicas – Estado, regiões autónomas e autarquias locais, ás quais cabe, para além da definição de ”regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, proceder “ás expropriações dos solos que se revelem necessárias á satisfação de fins de utilidade pública urbanística”.
O Urbanismo resulta, portanto, do interesse do Estado numa correcta gestão do uso e transformação dos solos urbanos, ou seja, daqueles que mais directamente se relacionam com o espaço da cidade – da urbe. Isto para distinguir o urbanismo de uma realidade que lhe está próxima e que a constituição se preocupou em distinguir, que é o ordenamento do território, realidade mais abrangente e á qual o urbanismo tem de se subordinar (note-se a alusão da lei fundamental á relação entre os instrumentos de planeamento territorial)[1].
Também a LOTU faz referência a essa destrinça, que se nota, sobretudo, ao nível da incidência territorial, e não tanto no plano dos objectivos. É assim que no artigo 1.º n.º2, se pode ler que “ a politica de ordenamento do território e de urbanismo define e integra as acções promovidas pela a Administração Pública, visando assegurar uma adequada organização e utilização do território nacional, na perspectiva da sua valorização designadamente no espaço europeu, tendo como finalidade o desenvolvimento económico social e cultural integrado, harmonioso e sustentável do País, das diferentes regiões e aglomerados urbanos”.
Do que se disse, podemos identificar algumas semelhanças entre Ambiente, Urbanismo e Património Cultural:
1. No plano Constitucional, todas se encontram incluídas no capítulo dos direitos económicos, sociais e culturais, o que justifica a sua tendencial feição objectiva, a título de tarefa do Estado;
2. A sua estrutura, predominantemente objectiva, explica-se, por seu turno, em função da sua natureza de interesses de realização comunitária. Quer o património cultural, quer o urbanismo, quer o ambiente, são grandezas que se fruem, mas que não se possuem e que sobretudo, são causa e consequência de uma vivência cívica cada vez mais intensa por parte das populações;
3. Esta característica comunitária manifesta-se, em qualquer das três realidades, em dois planos: o presente e o futuro. Queremos referir-nos á vertente prospectiva que as envolve nomeadamente em termos de solidariedade intergeracional. Este facto é patente ao nível do urbanismo - veja-se a alínea a) do artigo5.º da LOTU, onde se lê que: “a politica de ordenamento do território e de urbanismo obedece aos princípios gerais de: a) sustentabilidade e solidariedade intergeracional, assegurando a transmissão ás gerações futuras de um território e de espaços edificados correctamente ordenados”- e do ambiente - alínea d) do n.º2 do artigo66º da CRP- além de estar implícita na ideia de preservação do património cultural, quando se apela ao continuum da identidade cultural portuguesa através do tempo
O que os distingue?
A culpa da confusão de objectos começa, na lei fundamental, e é agudizada pela qualificação de componentes ambientais humanos feita no artigo 17.º/3 de Lei de Bases do Ambiente. Esta constitui, salvo melhor opinião, um vício derivado da noção ampla de ambiente, da visão gianniniana, fatalmente não unitária, que pretende “reduzir à escravidão os outros ramos ou proceder á sua anexação pura e simples”[2]. O direito do Ambiente só faz sentido se reduzido ao seu núcleo próprio, que é o da preservação da capacidade regenerativa dos recursos naturais, sujeitando os utilizadores a princípios de gestão racional daqueles. O resto, é com outros ramos do Direito:
1. O Direito do património Cultural tutela a memória de um povo, o passado, enquanto o Direito do Ambiente visa assegurar, de forma indirecta, a sobrevivência física dos membros de uma comunidade, actuais e vindouros, ou seja, o presente e o futuro. Entendê-los unitariamente é misturar a finalidade de protecção de valores civilizacionais com valores ecológicos, obra humana com obra natural;
2. O direito do Urbanismo contempla uma série de instrumentos através dos quais se pretende promover a correcta gestão de um espaço urbano, não garantir condições de utilização racional de recursos naturais, nem assegurar a protecção de determinados imóveis que reflictam traços da memória de uma comunidade. Naturalmente que, sendo áreas muito próximos, poderá haver entrecruzamento de finalidades. Observem-se os enunciados das alíneas a) e h) do nº1 do artigo 6.º da LOTU, onde se prevêem, como objectivos do ordenamento do território e do urbanismo, “a melhoria das condições de vida e de trabalho das populações, no respeito pelos valores culturais, ambientais e paisagísticos” e “reabilitação e a revitalização dos centros históricos e dos elementos do património cultural classificados”, respectivamente.
A maior aproximação parece acontecer quando há normas que almejam, simultaneamente, a correcção do ordenamento urbanístico e a integração, nesse espaço, de um imóvel classificado em atenção ao seu interesse cultural. Ainda assim, os objectos distinguem-se, pois o que presumivelmente se tentará é a preservação das características do imóvel dentro da lógica de arrumação do espaço prevista no instrumento de planeamento urbanístico, com eventuais cedências de um ou outro lado, atendendo á concreta inserção do imóvel e á sua finalidade.
3. O Direito do Ambiente deve circunscrever-se a um objecto mais operativo, que permita centralizar os esforços em torno de políticas coerentes. Na nossa opinião essa redução passaria pela eleição de objectos mais definidos: os recursos naturais. Assim o Direito dos bens ambientais equivaleria “ao conjunto de normas que regulam as intervenções humanas sobre os bens ecológicos, de forma a promover a sua preservação, a impedir destruições irreversíveis para a subsistência equilibrada dos ecossistemas e a sancionar as condutas que os lesem na sua integridade e capacidade regenerativa[3].
CARLA AMADO GOMES considera que não parece ser vantajoso construir conceitos como os de ambiente urbano ou ecologia urbana que, nas palavras de FERNANDO ALVES CORREIA, teriam uma “tríplice dimensão de combate á poluição urbana, de melhoria do ambiente construído, pela via do incremento da qualidade das edificações e da preservação dos centros históricos, e de criação e valorização dos espaços naturais da cidade”. CARLA AMADO GOMES considera que o combate à poluição, sempre que estiver em causa a salvaguarda da saúde humana, pertence ao âmbito do Direito da Saúde Publica; a melhoria do ”ambiente construído” integrará a componente da estética das edificações, o que cabe de pleno ao Direito do Urbanismo; a salvaguarda dos centros históricos é do foro do Direito do Património Cultural, e a criação e valorização dos espaços naturais da cidade fará parte do Direito do Ambiente[4].
Em conclusão:
o Direito do Património Cultural tutela valores de civilização, disciplinando a intervenção de entidades públicas e privadas em bens de interesse cultural; o Direito do Urbanismo tem por objecto a correcta ordenação do espaço da cidade, limitando as actividades de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos; o Direito do Ambiente deveria entender-se como o conjunto de normas que regulam as intervenções humanas sobre os bens ecológicos, em atenção á sua adequada preservação e desenvolvimento.
Não é demais sublinhar a intercomunicabilidade dos ramos em causa. Autonomia disciplinar e científica não invalida convergência de objectivos, não obsta a sobreposições. Elas são mesmo essenciais, como forma de atestar a necessária articulação entre as várias políticas, muitas vezes prosseguidas através de um mesmo instrumento jurídico. Uma mesma norma pode pretender a protecção de um imóvel de interesse nacional, a preservação de certas espécies arbóreas de um parque em seu redor e a adequada inserção desse imóvel do ponto de vista da arrumação do espaço urbano e eventualmente habitável na sua vizinhança. A norma pode ser a mesma; os interesses protegidos é que não são, embora a sua realização conjunta contribua para uma melhoria substancial da qualidade de vida dos mais directamente afectados pela a sua incidência.
[1] Esta distinção entre Urbanismo e Ordenamento do território que resulta da norma Constitucional parece aproximar-se da posição defendida por FREITAS DO AMARAL
[2,3,4] Gomes, Carla Amado; ”Direito do património cultural, direito do urbanismo, direito do ambiente : o que os une e o que os separa”; Coimbra : Coimbra Editora, 2001. – pag 359
Daniel Almeida nº14687
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