O trabalho aqui realizado refere-se a um tema que, embora já não esteja na actualidade ou já tenha “passado um pouco à história”, será sempre um tema gerador de muita polémica e controvérsia sendo sempre susceptível das mais diversas opiniões. Reporto-me aqui à problemática das touradas e dos touros de morte tendo por base a defesa e protecção dos animais no âmbito da cadeira de Direito do Ambiente.
Durante longos e vários anos formou-se na mentalidade da nossa sociedade um costume, contra legem ou não, que nos permitiu fazer da tourada um espectáculo e uma tradição, sacrificando assim os touros que neste espectáculo participavam e levando muitas vezes à morte destes para regozijo do público que via nessa estucada final o momento áureo do espectáculo.
Pela natureza que tem, esta prática desde sempre dividiu as opiniões e gerou divergências entre o público. Para uns tal prática não é mais do que um espectáculo hediondo em que os animais são a personagem principal. Estes animais são assim vítimas da crueldade do homem que devendo protegê-los, ao invés os mal trata de forma brutal e desumana infringindo-lhes dor, intimidando e, por fim, matando-os depois de numa luta desigual os cansar para lhes poder dar o golpe final que os levará ao fatal destino e tudo isto apenas com o propósito sórdido de se divertir. Para outros, a tourada é mais do que um simples espectáculo ou divertimento, chega a ser uma arte, a expressão de um povo, de um grupo, de uma região, um símbolo de cultura e de expressão da mesma vendo na morte do animal um acto honroso e digno até para o animal considerando-o menos doloroso até do que o posterior abate em matadouros e locais apropriados.
Polémicas à parte, já desde a Era Romana, berço e fundamento do nosso direito e do nosso sistema e ordenamento jurídico, que era comum realizarem-se vários espectáculos em que os animais eram importantes intervenientes. Os Romanos pareciam ter uma sede insaciável pelo espectáculo, despendendo enormes somas de dinheiro e engenho bem como técnicas em efeitos especiais e organizações e realizações de espectáculos. Estes espectáculos eram vistos e apreciados por todos desde o mais alto imperador passando pelo povo e pelos plebeus. Todos, sem excepção, apreciavam estes rituais que eram muitas vezes realizados em honra e oferecidos a Deuses e Deusas, tal como Ceres (Deusa dos cereais). Por outro lado, os espectáculos funcionavam também como uma arma política na medida em que, ao ocuparem a cabeça do povo com diversão e cultivando o ócio do mesmo, estes se alheavam das questões políticas e das tiranias realizadas pelos seus governantes. Neste sentido já escrevia Cícero “…panem et circenses…”, ou seja, dêem-lhes pão e circo e assim governarão bem.
Já ao serviço da justiça, estes jogos ou duelos eram vistos como formas de punição aos criminosos uma vez que a sentença final resultava na morte em público dos mesmos que serviam assim de exemplo para os restantes tendo a pena um fim de prevenção geral de forma negativa visando a dissuasão da pratica do crime pelas pessoas. Por fim, estes jogos eram em si também uma forma de afirmação da superioridade da civilização Romana face aos seus inimigos bárbaros.
Deste modo, eram frequentes os espectáculos no circo Máximo com a utilização de animais, as lutas entre os mesmos, as corridas de carros puxados por animais, corridas de cavalos e, por último, os mais violentos, bárbaros e sangrentos combates de gladiadores em que se punham frente a frente animais e pessoas e se mediam as forças entre os mesmos. Estes eram sem dúvida os mais apreciados, chegando a encher a arena do Coliseu, onde se realizavam. Os animais variavam conforme as facilidades de os arranjar, e os recursos dos patrocinadores que eram normalmente notáveis da cidade: tigres, leões, panteras, ou mais modestamente lobos e ursos de preferência sempre animais exóticos.
A utilização de animais em espectáculos assim como para outros fins não era para os Romanos algo de estranho ou incorrecto uma vez que os animais eram considerados coisas a nível jurídico.
Na actualidade também não houve grandes alterações a este nível. Hoje em dia também o nosso ordenamento considera os animais coisas, diferenciando-os assim dos humanos, tendo em conta a sua falta de racionalidade. Contudo, e por serem susceptíveis e capazes de sentir dor, angústia, desgosto, reagindo a maus-tratos devido ao facto de possuírem um sistema nervoso central estas “coisas” são consideradas coisas com algumas especificidades sendo por isso tratadas pela sua natureza de uma forma diferente face aos outros seres inanimados classificados como coisas pelo direito. Os animais são assim considerados coisas semoventes, pelo facto de se distinguirem das plantas ou minerais devido á faculdade que possuem de se mover por si.
Sendo considerados coisas, os animais não serão susceptíveis de ter personalidade jurídica, de serem titulares de deveres ou de direitos que daí decorrem ou de situações jurídicas ou obrigações pois esta é uma faculdade que nasce com a pessoa por ser pessoa e que se adquire com esse nascimento, nos termos do artigo 66º do Código civil. São deste modo considerados “…tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas…” como é referido no número 1 do artigo 202º do Código Civil.
Doutrinariamente coisa é ainda definido como bens, meios úteis e aptos a satisfazer e realizar necessidades humanas ou fins humanos, são meios extrajurídicos, físicos ou intelectuais que sejam hábeis a realizar os objectivos/fins do homem. Essas coisas devem ser juridicamente idóneas para prosseguir fins lícitos. São assim tudo o que tenha utilidade, individualidade e seja susceptível de apropriação.
Posto isto, e porque o direito é uma criação do homem para si mesmo para regular as relações complexas entre os seus, parece haver alguma incongruência quando, muito a propósito dos espectáculos com animais, nomeadamente as touradas, se defende a existência de “direitos dos animais”, direitos estes que muitas vezes são reclamados por várias associações de defesa e protecção dos animais que a todo o custo tentam impedir a realização dos espectáculos com touros e a morte dos mesmos nesses espectáculos, através de manifestações, campanhas publicitárias nas ruas, meios de comunicação e outros. Defendendo-se muitas vezes até um direito á vida do animal.
Para estas associações estes actos são considerados e vistos como actos de barbárie que retiram a dignidade ao animal que se encontra numa posição de inferioridade face ao homem uma vez que este anteriormente prepara o animal para a corrida ministrando lhe tranquilizantes e serrando-lhe os cornos ou outras práticas que facilitam ou visam facilitar a lide. É um acto de violência na medida em que o touro é picado no dorso com uma lança pontiaguda e afiada, esvaindo-se em sangue devido aos ferimentos causados que também o impedirão de levantar a sua cabeça devido ao facto de com os ferimentos se encontrar com a musculatura lombar muito dolorida. É com o touro neste estado lastimoso que o bravo matador entrará na arena. Espetará bandarilhas na zona já ferida pelo picador, tornando cada movimento do touro quase impossível devido á dor. Após esta lide que deixa o touro num estado moribundo segue-se o ritual da morte do touro que é feita através da introdução de uma espada longa e fina entre as espáduas do touro e chegando ao seu coração. Todavia, e por falta da precisão adequada, muitas vezes o touro é apunhalado por diversas vezes, acabando por cair por terra em agonia e morrendo em consequência do entupimento dos pulmões (que são perfurados também) pelo seu próprio sangue. Por fim e com o touro muitas vezes ainda vivo, são retirados ao mesmo, com um pequeno punhal que rasgará a espinal-medula, a cauda e as orelhas para dar ao matador como reconhecimento do seu acto de bravura. Toda esta violência é assim gratuita, visando apenas actos lúdicos e por isso não justificáveis e incorrectos moralmente, devendo ser assim também entendidos juridicamente ou seja, á luz do direito o do ordenamento jurídico.
Apesar da referida incongruência, o direito não poderia nunca deixar de ter uma palavra sobre este assunto pois como foi referido, pela sua natureza os animais são coisas mas gozam de especificidades.
A protecção dos animais constitui, já hoje, um valor estruturante das modernas sociedades pós industriais, quer a nível interno, quer a nível internacional. Existe hoje um consenso sócio-cultural alargado no sentido de se dever prestar essa protecção aos animais. Os animais não são assim susceptíveis de direitos mas são todavia merecedores de uma tutela jurídica por parte do direito, por parte do homem que por ver no animal um ser semelhante á sua espécie e de onde historicamente descendemos entende ter o dever de o manter e preservar, protegendo-o contra certas atrocidades que possam ocorrer até mesmo por motivos ambientais e de preservação das espécies.
Não nos podemos esquecer que o homem faz parte da natureza e integra-se nesta, pelo que todo e qualquer acto deste contra a natureza e o meio ambiente, bem como contra os animais pode levar a actos de “vingança”, de revolta e contestação por parte destes que podem ser fatais e prejudiciais ao homem. De referir neste contexto as tragédias com desastres ecológicos e ambientais, a extinção de espécies que levada ao extremo pode gerar a própria extinção da espécie humana e outros. O futuro sócio cultural da espécie humana passa assim por viver em paz com todas as outras formas de vida do planeta.
Num contexto ético humanista deve haver um respeito pela vida no seu todo, em absoluto, ou seja, por todas as formas de vida e principalmente pela vida sensível e dos nossos semelhantes. Nenhum ser deve ser condenado á morte ou a maus-tratos por não possuir inteligência. O ser humano, dotado dessa capacidade, sabe que o animal pode sofrer, sabendo fazê-lo sofrer e contrariamente sabendo como evitar esse sofrimento. Essa sabedoria dá-lhe responsabilidade não o podendo deixar indiferente a estas realidades cruéis o que a ocorrer demonstra uma anomalia, em termos sociais e culturais, considerando todos os valores humanos. Neste sentido, se a morte de um animal, sem sofrimento dispensável, parece adequada para fins alimentares, o seu sofrimento inútil merece a reprovação da sociedade e da cultura.
Os animais dispõem actualmente de uma considerável protecção a nível comunitário e internacional. De salientar a este nível a Convenção Europeia sobre a protecção dos animais nos locais de criação de 10 de Março de 1976 e a Convenção Europeia para a protecção dos animais de companhia de 13 de Novembro de 1987 para além de outros diplomas, decretos e directivas.
A nível interno, a protecção dos animais é regulada pela Lei 92/95 de 12 de Setembro que foi posteriormente alterada pela Lei 19/2002 de 31 de Julho. Estabelece a lei, no seu artigo 1º número 1,uma proibição a todo e qualquer acto de violência injustificada a animais, ou seja, actos que consistam em infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões ao animal, isto tudo sem necessidade que o justifique. O número 3 do referido artigo continua e refere taxativamente outro tipo de actos infligidos contra animais igualmente proibidos interessando-nos em particular a alínea e) que proíbe a utilização de animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que isso resulte em dor ou sofrimento para o animal.
Já num capítulo á parte é regulado em especifico os espectáculos com animais. A utilização de animais com este fim é assim submetida a uma autorização/licença que deve ser previamente requerida ás autoridades competentes, nestes casos a Inspecção-geral das actividades culturais e os Municípios referentes aos locais onde o espectáculo se realizará (artigo 3º número 1 do diploma em causa). Este artigo estabelece no entanto uma ressalva no seu número 2 e permite uma excepção quanto á realização de touradas que mediante o cumprimento dos formalismos acima descritos são permitidas.
Quanto á morte do touro esta será igualmente proibida bem como o acto de lhe provocar a morte na arena o que será excepcionalmente permitido nos casos de se verificar no local ou região uma longa tradição de 50 anos mantida de forma ininterrupta e que tenha por base a expressão de uma cultura popular e apenas nos dias em que o evento histórico se realize, assim é referido nos números 3 e 4 do artigo 3º. Esta excepção está tal como as anteriores sujeita aos mesmos formalismos por parte das mesmas entidades que terão igualmente de investigar e confirmar a existência e durabilidade da referida tradição (número 5).
Resta ainda referir a Lei 12-B/2000 de 8 de Julho que estabelece a proibição dos espectáculos tauromáquicos com touros de morte, qualificando como contra ordenação a pratica de lide com tal desfecho, bem como a autorização, organização, promoção e direcção dos espectáculos e o fornecimento de reses ou de local para a sua realização, responsabilizando e punindo com pesadas coimas e sanções (que podem resultar numa decisão condenatória publicitada, no encerramento do recinto onde se verificou o espectáculo, na interdição do fornecimento de reses para estes espectáculos em território nacional e do exercício da actividade de artista tauromáquico, ainda que com carácter temporário, bem como a perda de objectos pertencentes ao agente (artigo 4º do diploma em causa)) as entidades que procederem a tais actos.
Para finalizar, e analisando o acima exposto e a referida legislação, chego á conclusão que estamos perante uma resolução hipócrita ou tentativa de resolução hipócrita de um problema que parece não ter muito fácil resolução.
Não querendo defender qualquer das partes, (os que gostam dos que não gostam) fazer de advogado do diabo ou colocar mais hastas na fogueira. Este espectáculo que do ponto de vista moral e ético se apresenta como incorrecto e que horroriza muitos de nós parece ter uma tendência a permanecer na nossa sociedade. Se repararmos bem todo este horror se justifica ou é justificável na medida em que estamos perante uma arte, arte essa que é em grande parte elitista. Se pensarmos que a tourada é uma fonte de receitas e rendimentos e que envolve toda uma espécie de industria que vai desde a criação dos touros passando pelo apuramento da raça dos mesmos até aos ganhos extraordinariamente auferidos por todos os intervenientes desde criadores a toureiros, ganadeiros, cavaleiros, bandarilheiros, neste espectáculo, percebemos o porque de por detrás de motivos como a tradição e outros se tenta justificar um problema injustificável.
A Lei que devia proteger os animais (não atribuir-lhes direitos) acaba por favorecer estas elites pois também o Estado como entidade pública recebe a sua parte nas receitas sempre apetecíveis destes espectáculos.
Aos gritos de revolta das associações de defesa dos animais que vêem na morte do touro o problema, por se considerar que o elemento vida deve ser inviolável e protegido até mesmo quanto aos animais e face a estas elites do mundo tauromáquico, a lei responde com um meio caminho, meio caminho esse sinuoso e enganador em que por meio de ressalvas e excepções não permite por um lado a violência e os actos bárbaros contra os animais e erradica a morte dos touros na arena e por outro continua a permitir os espectáculos das touradas e a violência sobre os animais durante as mesmas, terminando no posterior abate do animal num matadouro, animal este já enfermo e doente ou em casos muito excepcionais e justificados bem como devidamente autorizados a morte na praça.
Posto isto o problema é simples e fácil de resolver. Assim como uma casa que não deve ser inicialmente construída pelo telhado, necessitando de uma base sólida e pilares para se sustentar, quanto ás touradas também não é só a morte do touro que deve deixar de ocorrer, é todo o espectáculo que culmina nesse fim. Não se justifica o espectáculo de infligir dor a qualquer animal com o fim último de o matar, seja na arena ou fora dela solução esta que acaba por esconder o verdadeiro problema em questão pois e recorrendo a um vocábulo popular “longe da vista, longe do coração”, deste modo esconde-se um problema para não ter de o resolver.
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