- Da fundamentalidade do direito do ambiente, sua natureza e consequências em termos de regime.
Historicamente, como alude o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA(1), pode-se falar em três gerações de direitos fundamentais.
A primeira, nasce com o constitucionalismo liberal e alberga liberdades perante o Estado e direitos civis e políticos, como são exemplos, a liberdade de expressão, o direito de propriedade, o direito de sufrágio, entre outros. Entendia-se, à época, que estes direitos conferiam ao seu titular um espaço livre de acção só limitado pela lei e pela salvaguarda de outros direitos. Entendia-se ainda que estes direitos possuíam um conteúdo meramente negativo, correspondendo a um dever de abstenção das entidades públicas, havendo mesmo quem os considerasse direitos de natureza absoluta.
Segue-se os direitos fundamentais de segunda geração, trazidos pelo Estado social, como são os casos dos direitos ao trabalho, à segurança social, à educação, etc. Esta segunda geração de direitos fundamentais, ao contrário da primeira, era vista como a geração de direitos que reclamava a intervenção estadual, dependendo, portanto, a sua realização da intervenção de poderes públicos.
Com os ventos do Estado Pós-social, veio a terceira geração de Direitos fundamentais. Esta veio dar a necessária guarida jurídica a novas realidades do mundo moderno, como por exemplo nos campos do ambiente, das novas tecnologias de informação e comunicação (as propaladas “tic´s”), da genética, do procedimento e processos públicos, entre outros. Com o Estado pós industrial mínimo, “desenterra-se” o paradigma liberal, em termos de dogmática de direitos fundamentais, voltando a os encarar essencialmente como direitos de defesa contra agressões das entidades públicas (e privadas).
Entretanto, em Portugal a evolução da temática ambiental em sede constitucional resume-se em dois grandes momentos(2). Numa primeira fase, correspondente ao anos 40 e 50 e à Primeira metade da década de 70, as referências constitucionais ao ambiente eram escassas e não estavam inseridas na sistemática da lei fundamental, eram referências dispersas e ténues. Já numa segunda fase, que se inaugura com a constituição de 1976, não só se consagra o direito ao ambiente de forma explicita no texto constitucional, como também o ligam a um expressivo leque de incumbências do Estado e da Sociedade inserindo-o de forma plena no âmbito da Constituição material. A partir desde momento, o Estado português conseguiu alcançar a qualidade de Estado Ambiental.
A questão ambiental é tratada na Constituição Portuguesa (de 1976, claro!) sob dois prismas: por um lado, do ponto de vista objectivo, ou seja, enquanto tarefa fundamental do Estado nos termos do art. 9º alíneas d) e e), e por outro, do ponto de vista subjectivo quando consagra, nos termos do art. 66.º, um direito fundamental ao ambiente.
Sabemos no entando que o legislador constituinte português procedeu a uma divisão das águas em matéria de direitos fundamentais criando duas grandes categorias: os direitos liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais. Esta categorização de direitos fundamentais tem consequências sérias em termos de regime. Esta decorre do facto de não haver um regime sistemático explícito para os direitos económicos, sociais e culturais semelhantes ao regime dos direitos, liberdades e garantias.
A doutrina maioritária, estribada no art. 17º da Constituição, entende que o regime dos direitos, liberdades e garantias só se aplica aos direitos incluídos no título II da parte I da Constituição e aos direitos fundamentais de natureza análoga (que nos termos do art. 16º da Constituição podem também constar da lei ordinária e de regras de direitos internacional).
O regime dos direitos, liberdades e garantias, está assim pensado para direitos que se caracterizam por terem uma dimensão predominantemente negativa, ficando os demais sujeitos ao regime dos direitos económicos, sociais e culturais, encarados como direitos portadores duma dimensão predominantemente positiva.
Para o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, aquele entendimento não é correcto, pois não faz sentido, nos dias de hoje, destrinçar entre direitos fundamentais essencialmente positivos e direitos fundamentais essencialmente negativos. Assim, não é correcto dizer que os direitos, liberdades e garantias correspondem apenas a deveres de abstenção Estaduais e que os direitos económicos, sociais e culturais apenas conferem ao seu titular um domínio constitucionalmente garantido de agressões exteriores por parte de entidades públicas ou privadas. Se não vejamos: no que toca aos direitos fundamentais da primeira geração, estes necessitam para a sua realização (para além da abstenção Estadual que já tínhamos referido) da colaboração do Estado. Veja-se o caso do direito ao voto, que não se realiza se não houver um quadro legal que o permita, ou se não for feito o recenseamento, ou se não houver quem se responsabilize pelo escrutineo e divulgação dos resultados definitivos, etc. A mesma lógica se aplica aos direitos fundamentais de segunda geração, pois estes para além da dimensão positiva também devem ter uma dimensão negativa. Assim, por exemplo, quanto ao direito ao trabalho, o Estado para além de ter a incumbência de criar emprego (dimensão positiva) também tem o dever de não tomar decisões discriminatórias, no acesso ou na promoção no domínio da função pública (dimenção negativa). Em suma, do ponto de vista dogmático, todos os direitos fundamentais, independentemente da sua natureza, possuem uma vertente negativa – que impedem a existência de agressões no domínio constitucionalmente protegido – e, simultaneamente, uma dimensão positiva – que obriga à colaboração dos poderes públicos para a sua realização (3).
A adopção desta noção ampla de direito fundamental (noção que comportando uma dupla dimensão, simultaneamente negativa e positiva) implica a adopção de um novo paradigma em matéria do regime jurídico dos direitos fundamentais, que passa pela combinação das regras destinadas a garantir uma esfera individual protegidas de agressões de entidades públicas e privadas (correspondente ao denominado regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias), com regras destinadas ao estabelecimento de deveres de actuação e tarefas públicas (correspondente ao denominado regime jurídico dos deveres económicos sociais e culturais) (4). Assim, aquele regime é de aplicar a todos os direitos fundamentais na medida da sua vertente negativa; tal como este regime é de se aplicar a todos os direitos fundamentais na medida da sua vertente positiva.
Portanto não há um regime dicotómico de direitos fundamentais na constituição portuguesa, há sim um regime unificado que se aplica a todos os direitos fundamentais no que diz respeito às respectivas vertentes negativas e positivas. É isso que justifica a aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias aos direitos económicos sociais e culturais e não a existência de uma “analogia” (como entende a doutrina maioritária). Nesta esteira, o art. 17º da Constituição visa estabelecer um regime unificado para todos os direitos fundamentais.
Como fica evidente, também ao direito fundamental ao ambiente, embora contemplado no título III da parte I da Constituição, é de aplicar o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias, na medida da sua dimensão negativa, e o regime jurídico dos direitos económicos, sociais e culturais, na medida da sua dimensão positiva.
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(1) In Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, pp. 84 e ss., 2ª Reimpressão da Edição de Fevereiro 2002.
(2) Miranda, Jorge, in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3ª Edição, p. 533
(3) Silva, Vasco Pereira da, ob. cit., p 89.
(4) Silva, Vasco Pereira da, ob. cit., pp. 99 a 103
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