A Legítima Defesa de Agressões ao Ambiente


Introdução

Neste trabalho propomo-nos analisar a questão de saber se haverá ou não lugar a legítima defesa no caso de agressões contra o Ambiente. Para responder, importa clarificar três aspectos: se o Direito do Ambiente é ou não um Direito fundamental e nessa medida, se é ou não um direito subjectivo; como se configura o bem jurídico colectivo “ambiente” no Direito Penal; o preenchimento dos requisitos da legítima defesa no caso de agressões ao Ambiente.


Direito ao Ambiente como Direito Fundamental

Da análise do art. 66.º da CRP resulta que o homem é o titular dos direitos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, tendo em vista a melhoria da sua qualidade de vida. Adopta-se assim uma visão antropocêntrica do Direito ao Ambiente, pondo o Homem no centro e como fundamento da existência de normas de protecção do Ambiente.
Existe uma dimensão objectiva que se traduz na obrigação para o Estado de proteger e integrar o Ambiente nas suas tarefas fundamentais. Esta visão acentua-se com o facto de existir hoje um Direito Penal do Ambiente que garante de forma mais acentuada a vertente objectiva deste Direito. Esta dimensão objectiva exprime-se também na existência de bens jurídicos, bens jurídicos ambientais que são merecedores de tutela.
Mas a praticabilidade desta tutela objectiva só se consegue com a atribuição de uma protecção jurídica subjectiva que permita ao indivíduo actuar contra agressões ilícitas ao Ambiente. Deve haver um envolvimento da comunidade num assunto que a todos interessa e até por respeito a gerações futuras. A assumpção de deveres individuais de protecção do Ambiente é um assumir de responsabilidades do Estado, mas que encontra total justificação no facto deste ser um direito fundado na dignidade humana.
Concordando com Vasco Pereira da Silva na inserção do Direito ao Ambiente como Direito Fundamental
[1], entendo que haverá ainda mais legitimidade e necessidade de defesa em caso de legítima defesa. Se cada um de nós está vinculado ao respeito pelos Direitos Fundamentais da nossa República, acentua-se a perspectiva subjectivista e, logo, de protecção e garantia, por qualquer via, deles mesmos. Aliás, o Direito ao Ambiente beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, vinculando entidades públicas e privadas (art. 17.º e 18.º da CRP).


Enquanto bem jurídico digno de tutela penal

Ao criar crimes ambientais, “a ordem jurídica está a reagir da forma mais enérgica possível, prevendo a aplicação de uma pena privativa da liberdade”
[2].
Não vamos neste trabalho aprofundar as questões sobre a acessoriedade do Direito Penal do Ambiente em relação ao Direito Administrativo, nem qual a tutela que se considera mais eficaz, remetendo para melhor sede
[3]. Fica, da nossa leitura, o entendimento de que se justifica uma tutela penal do Ambiente, que terá uma função também de prevenção, acentuada pela aceitação de causas de justificação de reacções ilícitas a agressões também ilícitas ao Ambiente. Só a circunstância da Ordem Jurídica reagir com a forma mais gravosa para o agente que adopte conduta ofensiva do Ambiente pode legitimar a cada um de nós comportamentos de “guardiães” do Planeta Terra. Se houvesse somente tutela contra-ordenacional, não estaria tão presente a repulsa do sistema jurídico relativamente a ofensas ao Ambiente, logo não caberia a cada um de nós fazer valer no momento exacto da agressão, respeitando os requisitos da legítima defesa, o direito subjectivo a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Este é, como nos diz Figueiredo Dias, um bem jurídico colectivo de cariz universal, trans-pessoal ou supra-individual que deve ser entendido também como interesse legítimo da pessoa e que portanto é merecedor de tutela penal
[4].


Legítima defesa de agressões contra o Ambiente

A figura da legítima defesa surge como instrumento de prevalência do lícito sobre o ilícito. Nos termos do art. 32.º CP, “constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”. Ora, importa então verificar o preenchimento dos requisitos da legítima defesa em caso de agressões contra o ambiente.

Comecemos por aquela que mais relevância tem e que deve ser o ponto de partida para se defender se existe ou não possibilidade de uma actuação humana tendente à protecção de um bem de natureza ambiental: ou seja, o que cabe dentro dos “interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”. O bem ameaçado deve ser juridicamente protegido. Exemplos típicos são a vida, a integridade física, a liberdade, a propriedade, etc. Mas será que serão apenas os bens individuais aqueles que se podem defender com recurso a esta causa de justificação? Ou devermos também incluir bens supra-individuais?
A orientação clássica, com opiniões na doutrina e também na jurisprudência, entendia que era possível esta segunda hipótese. A superioridade do lícito sobre o ilícito prevalecia em qualquer situação independentemente dos bens jurídicos em causa, individuais ou supra-individuais.
Porém, hoje há uma tendência cada vez mais individualista da legítima defesa que leva a restringir muito os interesses que podem ser protegidos por esta via. Assim, entendem que os interesses em causa deverão ser pessoais e não do Estado ou da comunidade.
Mas atente-se no seguinte: O Estado e a comunidade podem sempre surgir como “terceiros” relativamente ao agressor. Além disso, muitas vezes estão em causa agressões que põem em risco a vida das pessoas. Na situação específica do Ambiente, o defendente é também o agredido porque é membro da comunidade e como tal parece justificada a legitimidade da defesa.
Mais; o direito ao Ambiente traduz-se numa relação entre um grupo indefinido de pessoas, por um lado, e as condições de um ambiente sadio e equilibrado, por outro. Há portanto um tutela individual, ainda, a proteger.
Parece ser de defender que os bens jurídicos supra-individuais, como é o caso do Ambiente, integram o conceito de interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, para efeitos de legítima defesa
[5].

Veremos agora os outros requisitos.

O comportamento agressivo terá de ser um comportamento humano voluntário, que pode ser uma acção ou uma omissão. Assim, no caso de agressões contra o Ambiente, podemos ter como exemplos os comportamentos punidos constantes do art. 278.º ou do 279.º CP, ou seja, causar um dano contra a Natureza ou praticar o crime de poluição.
Interessa retermo-nos um pouco neste ponto.
Estas normas não clarificam a intensidade que a conduta deverá ter para se considerar que foi violada a norma. Assim, o art. 278.º CP refere “forma grave” e diz-nos no n.º 2 as condutas que são relevantes para preencher o conceito. Usa, no entanto, conceitos vagos indeterminados, remetendo para fontes normativas de valor hierárquico inferior, como regulamentos, para definir o que são, por exemplo, “fauna ou flora selvagens legalmente protegidas”. Assim, trata-se de uma norma penal em branco que em última análise deve ser preenchido pelo Juiz no caso concreto.
Em relação ao crime de Poluição, cumpre decifrar o que entendemos como “poluir”. Em respeito pelo princípio da legalidade, podemos encontrar a definição de poluição na Lei de Bases do Ambiente, no seu art. 21. O art. 279.º CP faz depender o seu escopo avaliativo do direito administrativo, o que portanto parece levar a que os pressupostos da aplicação desta norma penal se encontrem na disponibilidade dos órgãos administrativos (veja-se o art. 279.º n.º 3) o que pode levar a “espaços livres de punição”, embora a conduta seja um atentado ao ambiente
[6]. De notar ainda que muitas vezes o que acontece é o “acerto financeiro” (à falta de melhor eufemismo…) entre o poluidor e a entidade administrativa fiscalizadora dos níveis de poluição, o que permitirá a emissão de níveis inadmissíveis de poluição para a atmosfera.
O que se pretende com esta breve exposição dos artigos do CP, é demonstrar que aquilo que é agressão para efeitos da legítima defesa no caso de atentados ao Ambiente é de difícil determinação à primeira vista. De facto, ninguém anda com decretos regulamentares nem instrumentos de medida de poluição para saber quando é que outra pessoa está a agredir o Ambiente, para efeitos destas duas normas.
Mas há que apelar ao bom senso sob pena de estar afastada a causa de justificação da ilicitude do acto de quem pratica um acto ao abrigo da legítima defesa, por não existir verdadeira agressão (ao Ambiente).

De seguida, o requisito da actualidade da agressão. A agressão é actual quando é iminente, já se iniciou ou ainda persiste.
Ela também tem de ser ilícita. Já vimos que o Ambiente goza de protecção penal e que, portanto, a Ordem Jurídica considera como ilícitas agressões contra o Ambiente.

Quanto à defesa ela deve ser necessária bem como necessários devem ser os meios empregues para repelir a agressão. No caso de bens supra-individuais como é o caso do Ambiente, a acentuada “funcionalização” destes bens jurídicos pode conduzir a restringir a necessidade dos meios de defesa ou mesmo até a eliminar a necessidade da defesa.
De facto, o meio tem sempre de ser idóneo e o menos gravoso para o agressor. Quando isto não aconteça, haverá lugar a excesso de meios ou excesso intensivo de legítima defesa, o que afasta a justificação do acto ilícito. No caso de agressões contra o Ambiente, é necessária uma cautela adicional: não se tratando de bens pessoais, o agente que actua ao abrigo de uma causa de justificação, terá de se limitar ao mínimo de dano para o agressor. Por exemplo, imaginemos que alguém (A) observa uma pessoa (B) a descarregar líquidos tóxicos na fonte de um riacho, riacho esse em que há uma espécie rara de aves que se encontra calmamente a beber água. No meio do mato, impossibilitado de chamar autoridades para por fim à situação, A sabe que se as aves beberem aquele líquido, morrem todas. A dirige-se a B, agarra-o, imobiliza-o, prende-lhe mãos e pés e guarda o líquido no seu carro, para depois proceder à descarga em sítio apropriado. Desamarra B e parte do local. Aqui parece haver lugar a legítima defesa. Já não se diria o mesmo se A tivesse atirado uma pedra à cabeça de B, de modo a deixá-lo inconsciente e a afastar o perigo de contaminação do riacho.
Quanto à própria necessidade de defesa, é uma exigência que se funda na ideia da defesa ser normativamente imposta, isto é, parece-nos que sempre que haja uma norma a proibir certa conduta, há legitimidade para defender a Ordem Jurídica. É este o caso.
Dificuldades podem surgir com a seguinte argumentação: o agente agressor do ambiente está disposto a cumprir a pena que lhe será aplicada mais tarde. Que legitimidade pode ter outro particular de impedir que ele pratique um crime que não afecta directamente a sua dignidade humana? Não será um comportamento eco-fundamentalista?
A resposta a esta última pergunta é não. A legitimidade do particular que vê a sua conduta ilícita justificada tem como alicerce dois argumentos: O primeiro, que, como se viu, o Direito ao Ambiente é um direito subjectivo de todos, que a todos afecta, e que a todos cabe proteger, na medida do necessário. O segundo, que o mesmo se passa em relação à legítima defesa de terceiro, em que o terceiro ofendido não reclama protecção e ainda assim a legítima defesa é possível.

Não se pretende que o indivíduo passe a ser um polícia ao serviço do Estado, substituindo-se a este. O que entendemos ser admissível é a concretização da posição subjectiva do indivíduo, conferida pelo próprio Direito Fundamental ao Ambiente, na justificação do acto ilícito praticado como reacção imediata a agressões ilícitas contra o Ambiente.


Conclusões

Pelo exposto, concluímos pela admissibilidade da figura da legítima defesa em caso de agressão ilícita ao Ambiente. Entendido este como bem jurídico colectivo, merecedor de tutela penal, conferindo um direito subjectivo público a cada indivíduo de fazer valer a sua posição e garantir pelos meios ao seu dispor que o respeito pelo Ambiente é assegurado.
A consciencialização dos cidadãos para a questão ambiental, para o respeito pelas normais penais e constitucionais de protecção do Ambiente, para o contributo activo de preservação da Natureza iria tornar grande parte deste trabalho inútil. Não seria possível sequer configurar casos da vida em que um particular se vê na situação de ter de agir em legítima defesa. Por outro lado, é essa mesma consciencialização e “wake up call” que as entidades estaduais e não-estaduais, enfim, a comunidade em geral, tentam transmitir mais recentemente que pode fazer mudar o rumo das contínuas ofensas ao Ambiente e fazer com que cada um de nós aja no sentido de evitar tais lesões.
Praticando o bem e evitando o mal. Lutando o ilícito com o lícito.




[1] “Pois só a consagração de um direito fundamental ao ambiente (expressa ou implicitamente) pode garantir a adequada defesa contra agressões ilegais, provenientes quer de entidades públicas quer de privadas, na esfera individual protegida pelas normas constitucionais”, pág. 28.
[2] Vasco Pereira da Silva, pág. 276.
[3] Vasco Pereira da Silva, ob. cit. pág. 275-285, Augusto Silva Dias, ob. cit. pág. 188-198, Maria Fernanda Palma, ob cit.
[4] O Autor dá o seguinte exemplo: “se, por exemplo, uma descarga de petróleo no mar provoca a morte de milhares de aves marinhas e leva, inclusivamente, à extinção de alguma espécie rara, também aí pode verificar-se a lesão de um bem jurídico colectivo merecedor e carente de tutela penal, ainda que tais aves sejam absolutamente insusceptíveis de utilização – por exemplo, para fins alimentares – por parte do homem. Não é possível descortinar aqui, ao menos em via de princípio, ofensa, sequer mediata, de um qualquer bem jurídico individual, possibilidade de referência a ele ou cadeia dedutiva que a ele conduza. E todavia, as aves referidas, se bem que não “utilizáveis” por quem quer que seja, constituem um património de todos.”, pág. 138.
[5] Neste sentido, Figueiredo Dias, pág. 387 e 388.
[6] O que leva mesmo alguma doutrina a considerar o art. 279.º n.º 3 inconstitucional. Assim, Teresa Quintela.


Bibliografia:

Dias, Augusto Silva, A estrutura dos direitos ao ambiente e à qualidade dos bens de consumo e a sua repercussão na teoria do bem jurídico e na das causas de justificação - Lisboa, FDL, 1995 - p. 181-234 - Separata de: Jornadas de homenagem ao professor doutor Cavaleiro de Ferreira, 1995

Palma, Maria Fernanda, Direito penal do ambiente: uma primeira abordagem, In: Direito do ambiente / coord. Diogo Freitas do Amaral, Marta Tavares de Almeida - Lisboa, 1994, p. 431-448

Dias, Jorge de Figueiredo, Direito penal: parte geral, Vol. I Questões fundamentais: a doutrina geral do crime – Coimbra, Coimbra Editora, 2004

Silva, Vasco Pereira da, Verde cor de direito: lições de direito do ambiente – Coimbra, Almedina, 2002

Baptista, Mônica Augusto Benevides, Direito ao ambiente e interesse difuso como pontos de referência indispensáveis para a caracterização do bem jurídico ambiental – Lisboa, 2006 Relatório de mestrado para a cadeira de Direito Penal do Ambiente apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Marques, Pedro Marchão, Crimes ambientais e comportamento omissivo: em torno da problemática do direito penal do ambiente - Lisboa, 1998 - Relatório de mestrado em direito penal




Marta Vieira da Cruz

Aluna n.º 14666

0 comentários:


 

Copyright 2006| Blogger Templates by GeckoandFly modified and converted to Blogger Beta by Blogcrowds.
No part of the content or the blog may be reproduced without prior written permission.