O Ambiente, os Cidadãos e as ONGA

A nossa Lei Fundamental determina que todos nós temos direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (art 66º CRP). Estamos perante uma realidade una e indivisível, que é diariamente usufruída e partilhada por um número indeterminável de pessoas, sendo por isso mesmo um bem insusceptível de apropriação individual.
É esta característica que o permite distinguir de qualquer outro bem jurídico. Tenhamos como exemplo uma acção que vise apurar a responsabilidade num acidente de viação, neste caso cada interveniente processual defende os seus interesses pessoais visando a reparação de danos sofridos na sua propriedade privada ou integridade física.
Apesar de o Ambiente ser um bem inapropriável individualmente não significa que não seja possível a sua protecção. Na verdade, o facto de todos sermos igualmente afectados por uma ofensa ao ambiente legitima todos os interessados ou afectados a defendê-lo.
Reconhecendo isso mesmo, a Constituição (art. 52º) e a lei (art. 45º da LBA, art. 2º da Lei de Acção Popular, e 26º-A do Código de Processo Civil) superam os requisitos clássicos de legitimidade processual e consideram que têm legitimidade para recorrer a tribunal em defesa do ambiente e de outros interesses difusos (ex: como a saúde pública, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público):
a) qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos (individualmente ou em grupo),
b) associações e fundações defensoras dos referidos interesses, desde que preencham determinados requisitos (art.3º da Lei de Acção Popular), são estes:

– terem personalidade jurídica, ie, serem uma pessoa colectiva autónoma, constituída por escritura pública;

– incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate, neste caso a protecção do ambiente;

– não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais, ou seja, não prosseguirem fins lucrativos.

Chegados a este ponto, não se pode deixar de ter em conta as acções por associações ambientalistas, hoje designadas como Organizações não governamentais de ambiente – ONGA - cujo estatuto vem regulado na Lei n.º 35/98 de 18/07. Trata-se de associações sem qualquer fim lucrativo cujo objectivo estatutário visa exclusivamente a defesa e valorização do ambiente, património natural e construído, bem como a conservação da natureza (art 2/1 da referida Lei). Como exemplos, não podemos deixar de referir a QUERCUS, a LPN, o GEOTA, etc…
Para uma associação ser reconhecida como ONGA precisa de preencher os requisitos supra referidos, sendo igualmente necessário o registo junto do Instituto do Ambiente (art. 17/1) e a existência de um número mínimo de 100 associados (art. 17/2).
A Lei das ONGA segue o rumo traçado pela antiga Lei das Associações de Defesa do Ambiente (Lei n.º 10/87 de 4/4) atribuíndo poderes de relevo, nomeadamente:
• direito de consulta e informação junto dos órgãos da Administração Pública sobre documentos (art 5º);

• direito de participar na definição da política e das grandes linhas de orientação legislativa em matéria de ambiente (art 6º);

• direito de representação em órgãos consultivos da Administração Pública (art 7º);

• em termos jurisdicionais é de destacar o art. 10º, que lhes permite:

a) propor as acções judiciais necessárias à prevenção, correcção, suspensão e cessação de actos ou omissões de entidades públicas ou privadas que constituam ou possam constituir factor de degradação do ambiente;
b) intentar, nos termos da lei, acções judiciais para efectivação da responsabilidade civil relativa aos actos e omissões referidos na alínea anterior;
c) recorrer contenciosamente dos actos e regulamentos administrativos que violem as disposições legais que protegem o ambiente;
d) apresentar queixa ou denúncia, bem como constituir-se assistentes em processo penal por crimes contra o ambiente e acompanhar o processo de contra-ordenação, quando o requeiram, apresentando memoriais, pareceres técnicos, sugestões de exames ou outras diligências de prova até que o processo esteja pronto para decisão final;

• isenção do pagamento dos emolumentos notariais devidos pelas respectivas escrituras de constituição ou de alteração dos estatutos (art. 11º);

• isenção do pagamento de preparos e custas pela intervenção em procedimentos administrativos e processos judiciais (ar. 11º).

Quanto à classificação destas associações, esta varia consoante a dimensão e âmbito geográfico de actuação (local, regional ou nacional), distinção esta que releva a vários níveis:

a) quanto ao direito de representação, este pode ser exercido em órgãos consultivos locais, regionais ou nacionais (art. 7º)
b) não faz depender a atribuição do direito de recorrer a tribunal (art 7/5, a contrario)
c) quanto à legitimidade processual, a lei atribui-lhes legitimidade independentemente de terem ou não interesse na demanda (art. 10º). A única limitação que a legitimidade - ainda que indirectamente - pode vir a conhecer será quando se estiver perante uma actividade causadora de danos ambientais geograficamente delimitados. Neste caso a ONGA local com um âmbito geográfico de actuação distinto do local onde foi causado o dano, poderá ver a sua legitimidade recusada pelo tribunal por não haver coincidência entre o objecto da acção e os fins estatutários da associação.

Sendo associações sem fim lucrativo e tendo em conta os tão nobres e importantes fins que prosseguem, o nosso Estado implementou um política de apoios mista, cabendo ao Estado conceder-lhes apoios e isenções fiscais (art. 12º e 14º) e a nós, cidadãos, praticarmos um pouco de mecenato ambiental (art 13º) com a máxima de que apoiando uma destas associações estaremos a dar um contributo para a melhoria do nosso ambiente. E para aqueles que são mais procupados com as deduções fiscais há boas notícias: a este apoio será aplicável o regime do mecenato cultural previsto nos Códigos do IRS e do IRC.

Uma vez que qualquer cidadão, ONGA ou órgão de autarquia local tem legitimidade para, em tribunal, defender um interesse que é de todos, penso ser necessário proceder à delimitação da figura de autor da acção. Entende-se por autor aquele que representa, sem necessidade de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares do mesmo interesse – que somos todos nós, de acordo com o artigo 14º da LAP. O autor da acção não tem de demonstrar que representa a vontade expressa de um determinado número de interessados. Funciona assim uma presunção de representação. Os demais interessados consideram-se, em princípio, defendidos pelo autor da acção. Esta presunção pode ser ilidida recorrendo-se à auto-exclusão, figura que permite a recusa da representação por parte dos demais interessados. No entanto, e tendo em conta que o ambiente é um interesse difuso, não faz sentido o recurso a esta figura visto que a decisão do tribunal vai recair sobre um único bem e que por isso mesmo é passível de uma só regulação, isto apesar de existir a tal pluralidade de interessados. Os interessados que pretendam excluir-se (propondo uma acção individual para o seu caso) podem fazê-lo em sede de interesses individuais homogéneos, ie, são situações em que temos igualmente uma pluralidade de indivíduos mas cada um é titular do seu direito individual, sendo os direitos no seu conjunto semelhantes tendo como origem uma fonte comum. Ex: vários proprietários de diferentes terrenos atingidos por um incêncio. Também estes direitos são abrangidos pela Lei da Acção Popular mas como têm natureza jurídica diferente dos primeiros podem ser apreciados em separado.

Tudo analisado, e segundo um estudo encomendado pela Comissão Europeia, e conduzido em oito Estados-
-Membros (Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Itália, Portugal e Reino Unido), ao Centro para o Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentado, podemos dizer que, em comparação com os restantes Estados-membros, “Portugal é um dos países que permite um mais amplo acesso aos tribunais por parte de cidadãos e organizações não governamentais de ambiente em matérias ambientais; paradoxalmente, Portugal é um dos países com um menor volume de acções judiciais, sendo de assinalar um número ainda mais reduzido de acções bem sucedidas”. Talvez isto se fique a dever a falta de recursos por parte das ONGA e falta de informação por parte dos particulares. Sem dúvida que a complexidade do mundo judicial desmotiva os cidadãos a defenderem os seus direitos. A um nível supra nacional as coisas também não se encontram facilitadas uma vez que o acesso dos cidadãos e organizações não governamentais de ambiente à justiça comunitária é muito limitado: não há, em regra, acesso directo ao Tribunal de Justiça por parte de cidadãos e ONGA (apenas podem apresentar uma queixa na Comissão Europeia); as instituições comunitárias apenas actuam contra Estados-membros (e não contra particulares) e desde que haja violação do Direito Comunitário.
Isabel Machado, nº 14475, Subturma 3

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