A panaceia dos biocombustíveis
As alterações climáticas surgem hoje com um relevo ao nível do debate público que muitos não se atreveriam a antecipar alguns meses atrás.
Figuras públicas (como Al Gore) e especialistas que apresentam relatórios reveladores parecem ter sido a gota de água que fez transbordar o copo da preocupação global com o clima e com o papel da acção humana na sua mudança.
“Mais vale tarde do que nunca”, dita a velha sabedoria popular, mas se da preocupação resultará acção só o tempo nos permitirá avaliar. Contudo, principalmente no espaço da União Europeia e na procura de encontrar soluções para um dos maiores desafios que se avizinham no que diz respeito ao combate às alterações climáticas – encontrar alternativas sustentáveis para o sector dos transportes – a palavra biocombustíveis assumiu o protagonismo.
Segundo o Decreto-Lei n.º 62/2006 de 21 de Março podemos entender como biocombustível “o combustível líquido ou gasoso para transportes, produzido a partir de biomassa”. Neste mesmo documento a biomassa é definida enquanto “a fracção biodegradável de produtos e resíduos provenientes da agricultura (incluindo substâncias vegetais e animais), da silvicultura e das indústrias conexas, bem como a fracção biodegradável dos resíduos industriais e urbanos”.
Se quando se fala do aproveitamento de resíduos o consenso tende a ser geral (salvaguardando a necessidade de privilegiar políticas preventivas), já quando entramos na área da produção de matérias-primas virgens para transformação em biocombustíveis, o consenso esbate-se.
A ideia de recorrer às culturas energéticas para alimentar os nossos automóveis parece ser interessante, até do ponto de vista social pelas mais-valias ao nível de emprego e eventual reabilitação de áreas desfavorecidas. A nível ambiental podemos identificar a utilização de um combustível renovável, com menores emissões poluentes e praticamente neutro em termos de emissões dos tão assustadores gases com efeito de estufa, como alguns dos principais argumentos a favor. Mas como nem tudo o que começa bem acaba bem, são já hoje muitas as vozes que se levantam para sublinhar o reverso da medalha em relação a esta suposta panaceia.
Nesta, como noutras questões, é quando começamos a analisar o problema em larga escala (e tal é fundamental à luz das metas assumidas pela Comissão Europeia de atingir uma utilização de 10% de biocombustíveis até 2020) que a sua sustentabilidade é posta à prova.
Segundo a Agência Europeia do Ambiente (http://eea.europa.eu) a produção de biocombustíveis pode colocar pressões significativas sobre o uso do solo, a biodiversidade e os recursos hídricos, mesmo quando são integradas considerações ambientais e se parte do pressuposto que as culturas energéticas não competirão pelo mesmo espaço hoje dedicado à produção de alimentos. A sustentabilidade energética das culturas, ou seja, o balanço energético final entre a energia necessária para as produzir – máquinas agrícolas, tratamentos aplicados, etc. – e aquela que nos oferecem quando se transformam em combustível, deve estar na linha da frente da avaliação do investimentos a fazer. De outra forma, assistiremos à multiplicação de projectos que mais não são do que operações de aproveitamento de dinheiros públicos, categoria da qual se parecem aproximar alguns dos projectos já propostos para Portugal.
E se no espaço da União Europeia os desafios parecem ser já tão significativos, quando olhamos para os efeitos que estas políticas podem ter em países em desenvolvimento o cenário é quase o de uma catástrofe à beira de acontecer. Problemas como a desflorestação das já escassas áreas de florestas virgens que ainda teimam em persistir, o desvio de terra arável da produção de alimentos para as populações, problemas de disponibilidade e poluição da água, de uso intensivo de agro-químicos e a perda ainda mais acelerada da biodiversidade são apenas alguns que não podemos ignorar. E isto tudo para que os depósitos dos automóveis nos países desenvolvidos possam continuar cheios.
A Comissão Europeia já admitiu publicamente que será muito difícil garantir a sustentabilidade dos biocombustíveis que chegam ao mercado europeu. A assumpção desta incapacidade após a definição das políticas é talvez um dos piores exemplos que poderíamos esperar da União Europeia.
Contudo, a maior ironia passa pelo facto de se não nos organizarmos de forma a garantir a sustentabilidade dos biocombustíveis podermos estar a contribuir para o agravamento do problema das alterações climáticas. O tal que motivou todo este movimento. Uma ironia que nos poderá sair muito cara. (In revista perspectiva)
Noutro sentido, erguem-se vozes discordantes, como a do Nobel da Economia2001.
“É preciso revisar os programas de biocombustíveis. Caso prejudiquem o abastecimento de alimentos, deve-se reduzir o ritmo de produção, pelo menos, por um tempo", declarou à Agência Efe o economista americano.
Michael Spencer falou sobre este assunto na apresentação de um relatório sobre desenvolvimento sustentável divulgado no Real Instituto de Relações Internacionais de Londres (Chatam House), que avalia o aumento do preço dos alimentos.
Segundo o vencedor do Nobel, o uso de biocombustíveis - feitos a partir do cultivo de produtos como a soja e o girassol - só representa uma "pequena contribuição" na luta contra a mudança climática uma vez que este não acredita que os benefícios desse combustível renovável no combate ao aquecimento global do planeta "justifiquem o seu possível impacto na produção de alimentos", pois existem outros métodos, com um "uso mais eficiente" da energia. Neste sentido o Nobel pediu para que fosse feita uma revisão das políticas que favorecem o cultivo dirigido à produção de biocombustíveis em detrimento do destinado á nutrição.
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