Trabalho nº3
A titularização da utilização privativa de recursos hídricos
1. O novo regime da Água: Enquadramento
A Directiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro teve uma influência fulcral na redefinição do regime jurídico dos recursos hídricos em Portugal. De facto, a Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro, denominada Lei da Água, teve por occasio e por ratio legis, por um lado uma imposição jurídica supranacional consubstanciada por aquela Directiva Quadro da Água e, por outro lado, duas carências consubstanciadas na exigência de uma actualização harmoniosa da política e da legislação hídricas e ainda a necessária positivação das bases substantivas e do quadro orgânico da gestão sustentável dos hídricos recursos.
Neste quadro, impunha-se adequar a lei às expectativas ambientais e de ordenamento do território litoral.
1.1. As competências orgânicas de gestão dos recursos hídricos
A Lei da Água articula-se institucionalmente nos seguintes organismos, conforme dispõe exactamente o artigo 7º da Lei da Água: a) a nível nacional, o Instituto da Água (INAG), que, como autoridade nacional da água, representa o Estado como garante da política nacional das águas; b) a nível de região hidrográfica, a respectiva Administração de Região Hidrográfica (ARH), a qual tem competência de gestão das águas, incluindo o respectivo planeamento, licenciamento e fiscalização.
Foram assim criadas pelo artigo 9º as ARH do Norte, do Centro, do Tejo, do Alentejo e do Algarve. As ARH têm a natureza jurídica de pessoas colectivas de âmbito regional, com autonomias administrativa e financeira e titularidade de património próprio. Não sendo administração autónoma stricto sensu, (nem, podendo ser directa), as ARH estão pois sujeitas a poder de superintendência e tutela do Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional – delegável no presidente do INAG.
2. O regime legal de titularização da utilização dos recursos hídricos
2.1. O regime de transição
A Lei da Água, no seu artigo 100º, contém uma detalhada disposição transitória sobre títulos de utilização. Assim, dispõe, como regra geral, que os títulos criados segundo o direito anterior à referida lei se mantêm desde que sejam dados a conhecer à ARH territorialmente competente no prazo de um ano. Quando o título tenha por objecto infraestruturas hidráulicas tituladas por mera licença, a norma permite aos seus titulares requerer a sua conversão em concessão, sempre que à luz da lei devesse ser esta a modalidade a adoptar. Existe ainda assim a limitação de que a concessão assim atribuída não possa ter prazo superior ao necessário para concluir a amortização dos investimentos realizados ao abrigo do título anteriormente obtido pelo utilizador.
Quando um título de utilização reúna os requisitos para a qualificação da respectiva infraestrutura como empreendimento de fins múltiplos, pode a mesma ser submetida ao regime previsto no artigo 76.º da Lei da Água sob proposta da Autoridade Nacional da Água e decisão do Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.
Nesta sede de transitoriedade, a Lei da Água vem depois, no nº 4 do artigo 100º, a estabelecer um regime de sentido contrário ao da revogação stricto sensu – entendida como acto administrativo que apenas extingue, ex nunc, os efeitos de um acto administrativo anterior. Vai em sentido contrário pois aproxima-se sim da licença, ex novo, ao admitir a regularização sem aplicação de coima à contraordenação ilícita por ausência pura de título de utilização. É que, quem pode o mais pode o menos: se se permite transformar estados, situações ou relações não tituladas (juridicamente inexistentes ou nulas, e contra-ordenacionais) em relações juridicamente tituladas, terá que admitir-se (come se admite) até a modificação de relações por licenciamento - revogando-as pois por concomitante efeito – em relações tituladas por contrato de concessão.
Entende-se a lógica da lei em trazer tais situações da clandestinidade ao espaço do ordenamento jurídico regular, mas poder duplamente excessivo: pela não aplicação, possível até à totalidade, da sanção contra-ordenacional, e pela eventual admissão à legalidade de situações que contrariaram reiteradamente os princípios jurídico-ambientais que a Lei da Água fez questão de inserir, definindo-os no artigo 3º.
2.2. A utilização privativa de recursos hídricos
2.2.1. Definição e conteúdo
A utilização privatista dos recursos hídricos afirma-se por oposição à utilização pública, situação enunciada no artigo 58º da Lei da Água que, prescreve, em sede de recursos hídricos, o princípio conatural à dominialidade pública: os bens do domínio público são de uso e fruição comuns. Segundo a Lei da Água, utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público é a utilização privada que: a) permite ao privado um maior aproveitamento desses recursos do que a generalidade dos utentes, ou b) implica alteração no estado dos mesmos recursos, ou c) coloca esse estado em perigo.
Esta entrada do legislador em tarefa doutrinal esquece uma característica liminar e essencial à utilização privativa do domínio: a sua natureza excepcional e a justificação da admissão da excepção por razão em que participe um interesse público – harmonizável com o interesse privado do requerente.
No que diz respeito ao conteúdo dos direitos (e deveres) dos titulares de licenças e dos contratos de concessão este é o de exercerem as actividades requeridas segundo as condições do deferimento da licença e as cláusulas contratuais, assim respectivamente.
2.2.2. A necessidade de titularização
Do título depende o exercício do direito de utilização privativa de domínio público, qualquer que seja a natureza e a forma jurídica do requerente. São exclusivamente admitidos como títulos os decorrentes de acto administrativo de licença e os de contrato administrativo de concessão. O fundamento legal encontra-se no artigo 56º da Lei da Água, com a epígrafe “Princípio da necessidade de título de utilização”, mas revelado por dois princípios basilares do direito do ambiente: o Princípio da precaução e o Princípio da prevenção.
Assim, qualquer actividade, pública ou privada e subjectiva ou objectivamente, que possa ter (ou “tenha”, como está expresso na lei) impacto (negativo) no estado das águas só pode ser realizada desde que permitida por título de utilização.
Depois, as modalidades da titularização são, também, imperativas e típicas de onde resulta que o direito de uso ou fruição privativo não é reconhecido ser adquirido por usucapião ou por qualquer outro título. No entanto não parece que seria inconstitucional a sujeição do seu uso ou fruição a qualquer outro título de utilização. As três formas não esgotam os tipos de títulos aos quais o legislador poderia em abstracto, admitir a legitimidade do título.
2.2.3. Actividades sujeitas a titularização
O artigo 60º e o artigo 61º da Lei da Água estipulam as utilizações privativas dos recursos hídricos do domínio público permitidas desde que tituladas por licença e concessão, respectivamente. Estes preceitos têm carácter taxativo.
O respectivo procedimento administrativo contratual segue a lei complementar e o CPA nos artigos 178º e seguintes - de entre os quais se releva a remissão do artigo 181º para as regras do procedimento administrativo comum do CPA e as concursais constantes dos artigos 182º e seguinte.
2.2.4. Procedimento eventual de informação prévia
Os sujeitos privados interessados numa utilização privativa dominial podem, em paralelo ao regime geral das operações urbanísticas particulares, requerer pedidos de informação prévia às ARH territorialmente competentes, sobre as possibilidades de utilização privativa de recursos hídricos. O eventual efeito constitutivo de direitos para os particulares decorrentes da informação é regulado em norma de diploma complementar.
2.2.5. Características do título de utilização
Em primeiro lugar cabe dizer que o titulo de utilização privativa de recursos hídricos está sujeiro a condições acessórias de interesse público: a titulada utilização privativa deve respeitar o disposto na lei e, em especial, o disposto no plano de gestão da bacia hidrográfica e nos instrumentos de gestão territorial, o cumprimento das normas de qualidade e das normas de descarga bem como a concessão de prevalência ao uso considerado prioritário, no caso de conflito de usos. Como segunda regra de condicionamento, a utilização privativa deve também, em caso de conflito de usos, submeter-se aos critérios de preferência estabelecidos no plano de gestão da bacia hidrográfica aplicável mas dando-se sempre prioridade à captação de água sobre os demais usos previstos.
Os títulos de utilização não são conferidos intuitus personae. Desta natureza decorre serem susceptíveis de transmissão; pelo que será pois de admitir quer inter vivos quer mortis causae. Este princípio ou característica do título já tem plena consagração, segundo a alínea d) do nº 2 da Lei nº 13/2007.
Uma das características é também a onerosidade já que todos os procedimentos administrativos tipificados para utilização de recursos hídricos têm adstrito o pagamento de taxas como contrapartidas da actividade administrativa procedimental da utilização dominial, da actividade concessionada, e como garantia do pagamento dos deveres particulares.
Por fim surge como traço característico deste regime legal a tipicidade de modalidades de extinção, a saber caducidade e revogação. Estes títulos extinguem-se por efeito do decurso do prazo neles estabelecido – caducidade; ou por revogação. O prazo regra de validade da licença é de 10 anos, admitindo-se a revisão das respectivas condições conforme preceitua o n.º 3 do artigo 67º. A concessão tem o prazo máximo de 75 anos, segundo o nº 6 do artigo 68º da Lei da Água. A caducidade opera pelo transcurso do prazo de validade fixado no título de utilização e conforme as condições fixadas pelas normas aprovadas nos termos do artigo 56º.
A caducidade da licença tem como efeito a reversão, gratuita, para o Estado, ou a remoção das instalações desmontáveis e a demolição das instalações fixas. Neste caso o titular da licença tem o dever de repor, a seu cargo, a situação material existente antes das obras. A caducidade da concessão tem como efeito a reversão, gratuita, para o Estado, das obras e instalações realizadas no estrito âmbito da concessão.
3. Da revogação dos títulos de utilização
3.1. Causas de revogação
No artigo 69º são estipulados quais são causas de revogação dos títulos de utilização. Nos termos do nº 6 do mesmo artigo, os títulos de utilização podem ser revogados fora dos casos previstos no número anterior, por razões decorrentes da necessidade de maior protecção dos recursos hídricos ou por alteração das circunstâncias existentes à data da sua emissão e determinantes desta, quando não seja possível a sua revisão. Constituem cláusulas gerais, plenas de conceitos carecidos de maior determinação, as constantes da alínea g) e do nº 7 deste artigo 69º.
As causas específicas (inerentes à natureza dos recursos de bens dominiais) de revogação dos títulos conformam-se à prevalência do interesse público dominial e à dinâmica do suporte material dos recursos ou à natureza destes mesmos recursos em concreto.
3.2. Efeitos das revogações
Os efeitos da revogação dos títulos de utilização privativa de recursos do domínio público hídrico encontram-se previstos, em especial, nos nºs 5 e 7 do artigo 69º da Lei da Água. Tais efeitos harmonizam-se com a natureza dos títulos e atendem aos interesses dos particulares titulados, designadamente ponderando os prazos de amortização dos investimento particulares.
É ainda efeito principal da revogação – após ter sido requisito legal geral expresso – o pagamento de uma indemnização justa, ou seja, que se considere os danos emergentes e os lucros cessantes. No entanto deve entender-se que o cálculo dos lucros cessantes deve atender à natureza precária da titulação e à previsibilidade legal que não frustra por isso, nos mesmos termos do direito privado, civil ou comercial, as expectativas do utilizador privado de recursos dominiais.
Bibliografia
- Canotilho, J. J. Gomes – O Direito ao Ambiente como Direito Subjectivo, Estudos sobre Direitos Fundamentais, (2004), Coimbra Editora, Coimbra, p.176 ss.
- Fernando dos Reis Condesso - Direito do Ambiente (2001), Almedina.
- José Alves Rodrigues - Titularidade dos Recursos Hídricos e Lei da Água (2006), Rei dos Livros.
- Directiva n.º 2000/60/CE
- Lei 58/2005 de 29 de Dezembro
- Lei nº 13/2007
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