Tutela Penal do Ambiente


A crescente antropomorfização da realidade natural e a correlação necessária entre o direito de um e o dever de outro, obrigação do Homem em relação a Natureza, de que fala Norberto Bobbio¹, é um sinal, entre tantos outros, da preocupação que atinge diferentes áreas do pensamento e do saber, e que revela a necessidade de um novo relacionamento do homem com a realidade Natural que o envolve.
O reconhecimento, hoje consensual, do perigo da exaustão dos recursos naturais, a necessidade de compaginar um desenvolvimento económico sustentado com a protecção do ambiente, são hoje realidade que congraçam vontades e fazem convergir esforços e que, de resto transformaram, nos últimos vinte anos a problemática da protecção do ambiente num dos temas mais mobilizadores.
Não falta mesmo quem, em razão da urgência em inverter a actual situação de degradação do ambiente e da protecção que a escala planetária se impõe prosseguir, fale da necessidade de uma "global governance" do planeta.
Também no nosso país a problemática da protecção do ambiente, da salvaguarda do equilíbrio ecológico, enfim, da garantia da qualidade de vida tem ganho particular relevância e importância, vertida em diferentes componentes do edifício jurídico que nos enquadra.
Desde logo, inscrevendo-se aqueles objectivos no texto constitucional de 1976, ainda em vigor, circunstância que constituiu, ao tempo, facto inovador, mesmo quando cotejado com a realidade de outros países considerados mais avançados na prossecução daqueles valores.
Na verdade, nos termos do disposto no art. 9º al. e) da C.R.P., constitui tarefa fundamental do Estado, defender a Natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar o correcto ordenamento.
Por outro lado, dispõe-se no art. 66º nº 1 inserido no capítulo II, do TÍTULO II, epigrafado direitos e deveres económicos, sociais e culturais, que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
No nº 2 deste preceito e nas 4 alíneas que o integram prescrevem-se as tarefas a realizar com vista a concretizar aquele desiderato que nos termos do nº 4 e impressivamente reafirmado, cabendo ao Estado o dever de promover a melhoria progressiva e aceleração da qualidade de vida de todos os portugueses.
E, não se esgotam nestes dois preceitos, as referências à prossecução daqueles objectivos acima enunciados. Estatui-se no art. 91º que os planos de desenvolvimento económico e social terão por objectivo promover o crescimento económico, o desenvolvimento harmonioso de sectores e regiões, a justa repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política económica com as políticas social, educacional e cultural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português.
É este o quadro de referência, pedra angular de todo o edifício jurídico, que impõe ao Estado a assunção de uma política de ambiente.
A concretização, em lei ordinária dos princípios enunciados pelos citados comandos constitucionais, veio a ser efectuada através da Lei 11/87, de 7/4 (Lei de Bases do Ambiente).
Este diploma contém no art. 5º nº 2 al. a) uma definição do que deva entender-se por ambiente, ai se dispondo que o ambiente é o conjunto dos sistemas físicos, químicos, biológicos e as suas relações e dos factores económicos, sociais e culturais com efeito directo ou indirecto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem
Aquela lei fixa, por outro lado, os valores ambientais protegidos, que divide entre componentes ambientais naturais (do art. 6º ao 16º) e factores ambientais humanos que constam nos art.ºs. 17º a 26º.
O prof. Diogo Freitas do Amaral ², anota, contudo e quanto à enumeração dos factores ambientais humanos uma incoerência lógica na formulação legal, na medida em que, entre esses factores (paisagem, património natural e construído), o art. 17º nº 3 inclui na al. c) e ao lado daqueles a poluição.
Nas palavras daquele professor " a poluição não é um valor ambiental a proteger, é obviamente uma ofensa aos valores ambientais protegidos".
É, ainda, este Autor que, em resultado da análise dos dispositivos contidos na Lei, avança com um conceito de ofensa ecológica, que define como ''todo o acto ou facto humano culposo ou não que tenha como resultado a produção de um dano nas componentes ambientais protegidas por lei".'
De acordo com a natureza da Lei de Bases, este diploma remete para legislação especial a regulamentação concreta das diferentes matérias abrangidas (cfr. artºs. 8º, 9º, 10º, 11º, 13º, 15º, 16º, 18º, 20º, 23º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 33º, 34º e 35º), contendo ainda um capítulo respeitante aos direitos e deveres dos cidadãos, onde se consagra a obrigação de indemnização nos termos da responsabilidade objectiva (art. 41º) e a possibilidade de recurso a embargos administrativos (art. 42º) atribuindo o direito ao ofendido de requerer que seja mandada suspender a actividade causadora do dano (ecológico) através daquele mecanismo processual de embargo administrativo.
Relativamente ao recurso a este meio processual designado por embargo administrativo e que nos termos do art. 45º é do conhecimento dos Tribunais comuns, o prof. Freitas do Amaral, depois de sublinhar a má técnica legislativa subjacente à redacção destes dois preceitos, reconhece que a vantagem deste processo, "é que um particular lesado por uma ofensa ecológica, se puder pôr em movimento um embargo judicial com o regime que lhe dá o Código de Processo Civil nos casos em que a iniciativa pertence à Administração Pública, fica sujeito a um regime mais favorável. É um regime favorável que não sujeita à iniciativa do embargo no prazo de 30 dias e que contém outras disposições que facilitam e tornam mais favorável esse regime".
Finalmente a Lei atribui ao Ministério Publico a defesa dos valores nela protegidos, (art. 45º nº 3) e consagra um sistema dualista de ilícitos"', crimes e contra-ordenações, dispondo o no art. 46º que para além dos crimes previstos e punidos pelo Código Penal, serão ainda crimes as infracções que a lei complementar, vier a qualificar como tal de acordo com o disposto na presente lei sendo as restantes infracções à Lei de Bases considerados como contra-ordenações (art. 47º).


Até 1/10/95, e a entrada em vigor do revisão do Código Penal de 1982, operada pelo Dec. Lei 48/95 de 15/3 , que introduziu tipos de crime que directamente protegem o ambiente - (artºs. 278º, 279º e 280º), o ambiente enquanto tal era apenas indirectamente protegido pela lei penal. Tal resultava de uma clara e intencional opção do legislador já que, no preâmbulo do Código Penal de 1982, se inscreveu que a não inclusão naquele diploma de delitos contra o ambiente arrancava da ideia que o combate a este tipo de ilícitos, "pode ser levado a cabo não só pelo direito penal secundário mas também pelo direito de mera ordenação social".
De resto, o prof. Figueiredo Dias sustentava já em 1977, que a protecção do ambiente realizava-se de "forma indirecta através dos crimes tradicionais", e era pacificamente aceite que, no Código Penal de 1982, várias eram as normas que continham essas protecções indirectas do ambiente e que estavam sub jacentes preocupações de ordem ecológica.
Era o que sucedia com os artºs. 258º (libertação de gases tóxicos ou asfixiantes), 269º (contaminação e envenenamento da água).
Comum a estas normas estava uma protecção indirecta do ambiente e daí o Dr. Lopes Rocha as qualificar como normas penais de preocupação ecológica, todavia normas penais imperfeitas: normas penais ecológicas porque pretendem salvaguardar o equilíbrio na relação homem recursos naturais, imperfeitas porque no contexto desta relação é a saúde humana que, como é imediata, será reforçada.
Por outro lado, e no que tange à forma e modo como deve ocorrer a intervenção do direito penal, na tutela imediata dos valores ambientais, há quem entenda, como o prof. Figueiredo Dias “que ela não deve operar-se através de verdadeiros crimes ecológicos, a integrar no Código Penal ao lado dos outros crimes tradicionais, mas antes constar de legislação penal extravagante, constante do chamado direito penal secundário”.
E a desvantagem desta opção traduzida pela desvalorização da sua colocação numa linha de intervenção jurídico-penal sem a dignidade da incriminação do direito penal seria compensada com a adequação, maleabilidade e mutabilidade com que hoje se transformam os critérios de avaliação de um ambiente sadio e evoluem os factores de natureza poluitiva ou antipoluente.
Porventura, procurando ultrapassar as dificuldades decorrentes da consagração do ambiente no capítulo dos direitos fundamentais do cidadão, constantes da Constituição, aquele professor estabelece então uma distinção entre a protecção da esfera pessoal, a levar a cabo pelo direito penal codificado e a esfera da protecção da actuação comunitária do homem (onde os direitos fundamentais de conteúdo social se inscrevem) a realizar pelo direito penal secundário.
Esta distinção é, todavia, considerada de natureza formal e “tem a ver com as especificidades técnicas de sectores de actuação que se regulamentam lado a lado com os crimes respectivos”.
Objecção de tomo que a codificação dos crimes ecológicos revela, é não permitir a responsabilização das pessoas colectivas, (atento o principio inscrito no art. 11º do Código Penal) que a sua inserção no chamado direito penal secundário permitiria, como no nosso ordenamento sucede quanto aos crimes contra a economia previstos pelo Dec.-Lei 28/84 e dada a previsão do art. 3° deste diploma.
A constatação deste facto, levou o prof. Figueiredo Dias a considerar que integrar os delitos ecológicos nos Códigos Penais significaria pois as mais das vezes conceder um tratamento privilegiado as pessoas colectivas perante as pessoas individuais, tanto mais injustificado quanto (...) “é sem duvida entre aquelas que hoje se depara com as maiores responsáveis pela deterioração ambiental”.
Seja como for a opção do legislador de 95, foi a de incluir no Código Penal ilícitos que directamente protegem o ambiente, assim surgindo um verdadeiro direito penal ecológico.
No preambulo do Dec. Lei 48/95 e justificando esta opção, inscreveu -se, que a mesma, revelando uma neocriminalização que é a resultante do aparecimento de novos bens jurídico penais ou de novas modalidades de agressões ou perigo, e de compromissos internacionais assumidos ou em vias de o serem por Portugal.
Ao acolher-se na codificação penal a protecção directa, do ambiente erigiu-se este em valor fundamental, assim se demonstrando a sua, essencialidade, resultante de uma consensualidade social que tem no direito penal o espaço da sua expressão e justamente por se concluir que a lesão daquele bem jurídico representa um caracter socialmente danoso.
Cabe aqui recordar os ensinamentos de Hans-Heinrich Jescheck ³ que “à norma jurídico-penal subjazem juízos de valor positivos sobre bens vitais, imprescindíveis para a convivência humana em sociedade que são, por isso, merecedores do poder coactivo do estado, representado pela pena”.
Confrontados, pois, com a nova realidade decorrente da entrada em vigor do Código Penal revisto, passemos à análise desse novo ordenamento jurídico penal que tutela o ambiente e a sua interacção com outro ramo do direito sancionatório punitivo que é o direito da mera ordenação social.
Ate 1/10/95, o direito de mera ordenação social cobria quase na plenitude as condutas de ofensa ambiental.
Na verdade, para além dos preceitos do Código Penal de 1982, já mencionados, e que indirectamente protegiam o ambiente, como se disse, refira-se também a existência de leis penais extravagantes nas quais se detecta aquela preocupação ecológica, embora a tutela directa seja a de outros valores.
Estamos a referir-nos à Lei da Caça (Dec. Lei nº 251/92 de 12/l1) que tutela primariamente a caça enquanto recurso económico e a Lei dos Incêndios Florestais (Lei 19/86 de 19/7) que protege as florestas enquanto valor patrimonial individual ou recurso económico crucial.
Importa antes de mais sublinhar que o direito penal, nesta sua nova tarefa de tutela do Ambiente, não pode prescindir do direito Administrativo, assumindo, alias, relativamente a este um carácter subsidiário. Resta recordar que é à Administração que incumbe definir critérios de acesso a actividades potencialmente agressoras do ambiente ou definir os valores limites dos factores poluitivos admitidos como toleráveis.
É assim necessário pugnar para que, como salienta o Dr. Souto Moura a Administração se revele “eficaz, o que passa por um sistema integrado com clara repartição de competências; actuante, o que pressupõe acção no terreno (...) e séria, e portanto impermeável a todo o tipo de corrupção” .
Em trabalho ainda inédito, o Dr. António Leones Dantas, docente do CEJ, sublinhando o carácter decisivo do contributo do direito Administrativo para a protecção do ambiente, anota que o mesmo tem repercussão ao nível da elaboração dos tipos criminais.
Assim, o disposto no art. 278º do Código Penal sanciona com pena de prisão até 3 anos ou multa até 600 dias, quem, não observando, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo de forma grave.
O recurso às normas penais em branco tem sido aceite que "os crimes ambientais sejam configurados como crimes de dano e quer o perigo seja concreto ou abstracto e paradigmática desta técnica a norma do art. 278.º, não contém todos os elementos caracterizadores da conduta subsumível ao tipo, remetendo para a norma administrativa a definição dos elementos necessários ao seu integral preenchimento (...)".
Igualmente no art.º 279.º, se faz um apelo ao direito administrativo, na medida em que a conduta socialmente danosa e, portanto objecto de sanção, é aquela que contraria prescrição ou limitações da autoridade administrativa.
De qualquer forma, concorrem então, no concreto da realidade o direito penal e o direito de mera ordenação social, ambos com o objectivo de protecção do ambiente e salvaguarda do ambiente ecologicamente equilibrado e sadio.
A professora Fernanda Palma em presença do disposto no art.º 2.º Dec-Lei n.º 48/93, de 15/3, que determina a revogação das disposições legais que prevêem ou punem factos incriminados pelo Código Penal, defende que o direito contra ordenacional do ambiente se encontra revogado.
Em sentido contrário se expressa o Dr. António Leones Dantas, no trabalho a que já aludimos e ainda inédito, sustentando que aquele art. 2.º, "se refere apenas aos ilícitos de natureza penal previstos ou punidos em norma avulsa, nada tendo a ver com o âmbito de ilícitos de ordenação agoira criminalizados".
E, acolhendo esta ideia, que se nos afigura incontornável, a delimitação da esfera de intervenção de cada um dos ordenamentos, desde logo por recurso ao Dec-Lei n.º 433/82, de 27/10, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo e que sofreu recentemente as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n.º 244/95 de 14/09.
Assim e nas situações em que o mesmo facto constitua simultaneamente crime e contra ordenação há que atentar na doutrina contida nos art.ºs 20º e 38º do citado diploma legal.
Por outro lado, enquanto no domínio das contra-ordenações se admite a responsabilização das pessoas colectivas (art. 7.º) e ela está vedada no âmbito da Codificação penal, o que, como vimos constituiu um dos maiores óbices à inclusão dos ilícitos ambientais no Código Penal e não em direito penal secundário, como defendia, nos termos que explicitamos a seu tempo, o prof. Figueiredo Dias.
No que tange a ordenamento jurídico penal ora vigente importa desde já alinhar algumas considerações, de carácter genérico e perfunctóorio, quanto aos 3 tipos de crimes consagrados no Código Penal.
O Dr. Souto Moura no trabalho a que temos vindo a fazer referencia alude a aparente incorrecta inserção sistemática do art. 279º, que não sendo crime de perigo, mas de resultado se encontra inserido no capítulo referente aos crimes de perigo.
Tal, na opinião daquele Autor, justifica-se na medida em que é ainda com aquele tipo de crimes que tem mais afinidade e por força da referência à conduta do nº 1 do art. 279º que se contem no art. 280º.
De resto o traço diferenciador do art. 280º que, enquanto crime de perigo comum tutela directamente outros bens jurídicos que não o ambiente, a saber, integridade física e património, é o conceito de poluição inadmissível
No art. 278º, pune-se a lesão de componentes ambientais naturais Fauna, flora e recursos de subsolo e ainda o habitat de espécies protegidas.
Os conceitos de fauna, flora e subsolo são os que decorrem do disposto respectivamente noa arts. 16º, 15º e 14º da Lei de Bases do Ambiente e a protecção dos mesmos e a que resulta dos Dec. Lei n° 50/80 de 23/7 e, Dec. Lei nº 114/90 de 5/4 (que aprovaram a Convenção sobre o Comércio Internacional da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção), o Dec. Lei nº 101/80 de 9/10 (que aprova a Convenção sobre Zonas Húmidas de Importância Internacional Especialmente como Habitat de Aves Aquáticas); o Dec. Lei nº 103/80 de 11/10 (que aprova a Convenção sobre a Conservação das Espécies Migradoras Pertencentes à Fauna Selvagem); Dec. Lei nº 95/81 de 23/7 e Dec. Lei 316/89 de 22/9 (referente a Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa).
O nº 2 faz apelo à noção de regido que, no entendimento de Souto Moura, há-de valer como região natural e não administrativa.
Analisemos agora o tipo do art. 279º, epigrafado ''Poluição'' e que constitui um crime ecológico puro.
Numa primeira leitura dos diferentes números do preceito, há que concluir que não se proíbe a poluição "tout court". 0 que está proibido é a poluição para além de certos limites, no dizer daquele normativo, quando ocorra em medida inadmissível, o que, como veremos, poderá originar dificuldade na definição do critério do (in)admissível ou do (in)tolerável.
O art. 21º da Lei de Bases do Ambiente, contem uma definição de acordo com a qual poluição abrange "todas as acções e actividades que afectem negativamente a saúde, o bem estar e as diferentes formas de vida, o equilíbrio e a perenidade dos ecossistemas naturais e transformados assim como a estabilidade física e biológica do território".
A formulação do preceito ao sancionar quem polui em "medida inadmissível", e susceptível de criar equívocos e dificuldades acrescidas na sua materialização fáctica.
Como refere Souto Moura, em "medida inadmissível significa quase sempre em quantidade inadmissível", o que poderia inculcar a ideia que à verificação do resultado típico, estaria subjacente uma ideia de grau.
Até um certo limite, constituiria contra-ordenação e acima deste, crime.
O risco que então se correria, era enorme, porque significaria deixar na mão da Administração, a quem, como vimos cabe conformar e regular as diferentes actividades lesivas ou potencialmente lesivas do ambiente, a possibilidade de definir o que era ou não um crime, o que só por si, constituiria uma intolerável violação do princípio da legalidade.
O crime não existe quando há poluição ou quando a poluição é grande. O crime existe quando há poluição, mais a inobservância das prescrições ou limitações da Administração. De tal modo que a poluição pode ser reduzida e haver crime, porque a Administração interveio e a poluição ser enorme e não haver crime porque a Administração não interveio".
Do que fica dito decorre a necessidade da fixação, de forma genérica e abstracta, dos valores limites que se admitam como toleráveis e da respectiva advertência aos agentes poluidores.
Na verdade, nos termos do nº 3 do art. 279º, impõe-se que ao agente poluidor sejam opostas limitações e prescrições e que o mesmo seja advertido pela mesma entidade limitadora que o não acatamento daquelas prescrições e limitações o fará incorrer em responsabilidade criminal.
Esta cominação é, no entender do Dr. António Leones Dantas, o "elemento que rigorosamente afasta o crime de poluição do crime de dano contra a natureza previsto no art. 278º (...) enquanto no crime de dano contra a natureza se fala em disposições legais ou regulamentares, no art. 279º fala-se em prescrições ou limitações impostas em conformidade com as leis ou regulamentos".
A forma de materialização da norma faz-se por apelo aos chamados valores limites.
De que modo?
0 recurso à formulação de um exemplo poderá concorrer para a explicitação do raciocínio e permitir traçar a fronteira da actividade lícita da ilícita penalmente.
No art. 279º nº 1 al. a) faz-se menção à poluição das águas.
Para a verificação do crime já sabemos que ela deve ocorrer em "medida inadmissível" e que esta significa que a natureza ou os valores da emissão ou emissões poluentes contrariam prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente e com a cominação da aplicação das penas previstas no art. 1º.
Tenhamos agora presente o dec. Lei nº 74/90 de 7/3, que aprova as normas de qualidade da água.
No preâmbulo deste Dec. Lei escreve-se "(...) o diploma perspectiva uma abordagem do tipo "objectivo de qualidade ambiental", isto é, os valores definidos para os parâmetros de qualidade representam limites para além dos quais, riscos para a saúde ou o ambiente são inaceitáveis (…)”
No art. 45º nº 1 deste diploma dispõe-se que a descarga de águas residuais provenientes do exercício de actividades específicas deverá em cada caso, ser objecto de portaria sectorial, na qual serão estabelecida as prescrições técnicas e demais condicionalismos de acordo com a sua natureza e os riscos próprios para a saúde pública e o ambiente, bem como formas de controlo, tendo em vista assegurar o respeito pelas regras básicas estabelecidas no presente Dec. Lei e a realização dos seus objectivos.
No nº 3 daquele diploma, estatui-se que a regulamentação sectorial relativa a descarga de águas residuais provenientes do exercício de actividades específicas será fixada, em cada caso, por pontaria conjunta dos Ministros responsáveis pelas áreas do ambiente, da Saúde e, conforme a tutela, da agricultura ou da indústria e energia.
O nº 4 dispõe que as normas específicas de descargas residuais para um sector de actividade são normas especiais, prevalecendo sobre as normas gerais de descargas.
Centremo-nos, agora, sobre a portaria nº 810/90 de 10/9, que aprovou as normas sectoriais relativas a descarga de águas residuais provenientes de todas as explorações de suinicultura, actividade que, como sabemos, tem uma grande dimensão na estrutura económica desta região
Os valores limite das descargas desse tipo de unidades industriais, vêm contemplados no quadro que consta do art. 3° da Portaria.
Neste caso, verificar-se-á a conduta subsumível à previsão do (art. 279º nº 1 a1. a) do Código Penal, quando o agente ultrapassar aqueles valores limites, tendo dos mesmos prévio conhecimento pela Administração (o que ocorrerá por exemplo quando da concessão de licenças ou alvarás para unidades novas) que, do mesmo passo, o informará de que o desrespeito por tais valores o fará incorrer em responsabilidade criminal.
No que respeita às instalações já em laboração, nada obsta a que a Administração casuisticamente, à medida que exerce a sua função de fiscalização, notifique os diferentes agentes dos limites tolerados e das consequências criminais da sua ultrapassagem.
Assim, se nos afigura pois, e ao contrário do que vem sugerido no oficio/exposição do Sr. Comandante da Capitania do Porto da Nazaré, que nenhuma razão se vislumbra para que, por mero efeito, da entrada em vigor do novo Código Penal, os Autos levantados a eventuais infractores ambientais sejam remetidos de imediato a Tribunal.
É que, a configuração do crime, que legitimaria a remessa do respectivo auto de noticia ao Ministério Público, por força do disposto no artº 243º nº 3 do C.P.P., impõe a verificação dos elementos inscritos no tipo do art. 279º, que como vimos, resultando ou da violação de prescrições e limitações impostas pela Administração, como ainda, da prévia comunicação daquelas e da cominação da responsabilidade criminal que tal violação acarreta.
Cabe agora, uma referência ainda que sucinta, aos procedimentos processuais a observar pela Polícia Marítima, na sua nova configuração de órgão de polícia criminal por força do disposto no art. 29º do Estatuto do Pessoal da Polícia Marítima, anexo ao Dec. Lei nº 248/95 de 21/9 e em vigor desde o p.p. dia 1/3/96.
0 conceito de órgão de polícia criminal é o que consta, do artº 1º al. c) do Código de Processo Penal (C.P.P.), que o define como a entidade ou agente policial a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciaria ou determinados pelo Código de Processo Penal.
Para efeito da lei processual penal, por autoridade judiciária, entende-se o Juiz, o Juiz de Instrução ou o Magistrado do Ministério Publico, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência (art. 1º al. b do C.P.P.).
São, finalmente autoridades de polícia criminal, os inspectores, subinspectores e chefes da Polícia Marítima, por força do estatuído no (nº 2 do art. 2º do Estatuto do Pessoal da Polícia Marítima, e por referência a al. d do art. 1º do C.P.P.).
No desempenho das suas funções enquanto órgão de polícia criminal, deverão os elementos da Polícia Marítima, ter em particular atenção o disposto no artº 243º do C.P.P., que disciplina a forma de elaboração dos autos de noticia (nº 1 e nº 2) e impõe a obrigação de remessa ao Ministério Publico (nº 3 do citado preceito).
Particular referência merece ainda o dispositivo consagrado no art. 249º do C.P.P., epigrafado, "providências cautelares quanto aos meios de prova", relevando nesta matéria, o disposto no nº 3 daquele preceito que impõe aos órgãos de polícia criminal, mesmo após a intervenção da autoridade judicial, assegurar novos meios de prova de que tiver conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata aquela autoridade.
Uma última, e breve referência se impõe agora fazer ao art. 280º do Código Penal vigente.
Como adiantado já, o predito normativo, configura-se como um crime de perigo, e crime de perigo concreto, dependendo, pois a respectiva verificação, da efectiva perigosidade que atinja os bens jurídicos que directamente tutela, vida, integridade física e património.
O perigo, concreto, tem relevância penal, "sempre que através de um juízo de experiência, se possa afirmar que a situação em causa comportava uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vier a desencadear ou a acontecer''.
É a punição do perigo, e não de um dano verificado, decorre dos desvalores socialmente danosos que tais condutas, ilícitas, podem desencadear.
Á verificação do crime, subjaz a necessária demonstração, de que a acção poluitiva, criou, uma situação potencialmente ofensiva, logo pondo em perigo, bens jurídicos tutelados e já acima enunciados.


¹ Norberto Bobbio(Turim, 18 de outubro de 1909 — Turim, 9 de janeiro de 2004) foi um filósof político, historiador do pensamento político e senador vitalício italiano.

² Diogo Pinto de Freitas do Amaral (Póvoa de Varzim, 21 de Julho de 1941) é um político e professor universitário português. Foi fundador, juntamente com outros políticos, do partido político Centro Democrático Social (CDS) em 1974, meses após a revolução dos Cravos de 25 de Abril, sendo seu presidente até 1982, e de novo entre 1988 e 1991.
Foi assistente e professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (onde se licenciara).


³ Hans-Heinrich Jescheck (Liegnitz, Schlesien, 10 de janeiro de 1915) foi um penalista alemão.
Foi professor de Direito na Universidade de Friburgo de Brisgovia, diretor do Instituto Max-Planck, magistrado do Tribunal Superior de Karlsrule e presidente da Associação Internacional de Direito Penal.
Foi reitor da Universidade de Freiburg (1964-1965).

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