Animais: Um Terceiro Género

I. A matéria de que se vai tratar prende-se com a problemática – cada vez mais viva – dos direitos dos animais ou, optando por partir de uma formulação mais pacífica, da protecção dos animais.
Tendo em conta esse fim, vamos tomar como ponto de partida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19 de Outubro de 2004, cujo objecto é precisamente o da tutela dos animais. Mais concretamente, colocou-se àquele Tribunal a questão de saber se a actividade desportiva de tiro com chumbo aos pombos em voo é lícita, ou ilícita, à luz do direito português vigente.


II. Para a resolução do problema o STJ parte da análise do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, relativa à protecção aos animais. Nos termos deste preceito “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”.
Na interpretação da norma jurídica em causa, o Tribunal, atribuindo especial importância ao elemento teleológico, considera que “o fim da lei é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins envolvidos em função do Homem”. Tendo – erroneamente – por assente que a referida prática não causa “sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões” aos pombos, o STJ refere que a chave de resolução do caso reside na “ponderação de valores sociais envolvidos no conceito indeterminado de necessidade” constante da norma. E considera que este se traduz no “resultado de uma valoração de confronto entre a prevenção dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade”.
Fundando a solução dada ao caso na tradição e relevância da actividade de tiro aos pombos em voo (que considera integrante do património cultural português, em termos análogos ao que sucede com a arte equestre ou as touradas), o STJ conclui que “há no caso espécie justificação e utilidade para a e na morte dos pombos […] e para o sofrimento que isso lhes implica, que se não revela cruel”. A prática em causa seria, assim, licita nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95.

Cumpre ainda fazer uma breve referência à solução dada ao mesmo caso pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Ao contrário do sustentado pelo STJ, este Tribunal considerou que “a actividade de tiro levada a cabo pela recorrente e coordenada pela Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça é ilícita, no actual ordenamento jurídico português, tendo em conta a interpretação da Lei n.º 92/95 de 12/9, à luz da perspectiva actualista”. É também esta a minha posição, como tentarei demonstrar de seguida.


III. Na análise deste caso devemos ter de facto como principal referência normativa o artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, que tem como epígrafe “medidas gerais de protecção”. A presente lei é fruto da recente tomada de consciência da necessidade de protecção dos animais que, porque dotados de sensibilidade, não podem ser vistos como meras coisas, como resulta do nosso actual direito civil.
O referido preceito consagra uma proibição geral de toda e qualquer violência injustificada contra animais. Concretizando, considera como tal o acto desnecessário que tenha como consequência a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões para um animal.
No n.º 3 do mesmo artigo, excepciona-se das específicas proibições aí consagradas a arte equestre, as touradas, a investigação científica de comprovada necessidade e a caça. Ora, como bem nota o Dr. André Dias Pereira, a actividade desportiva de tiro aos pombos não se encontra abrangida por qualquer uma das referidas cláusulas de excepção, pelo que cai no âmbito da proibição geral constante do n.º 1 do artigo 1.º.
Todavia, o autor da anotação ao Acórdão do STJ, parece tomar o argumento de substituibilidade da actividade de tiro aos pombos em voo pela de tiro aos pratos e/ou às hélices como determinante, justificando, assim, a ilicitude daquela prática pela sua desnecessidade. Não me parece que, estando em causa actividades eminentemente lúdicas, seja razoável ter como critério fundamentador da licitude/ilicitude da actividade o de substituibilidade dos animais por meras coisas.
Surgem também obstáculos quanto à qualificação da actividade de tiro aos pombos em voo como tradição, em virtude de ser praticado por um número escasso de clubes de tiro em Portugal. Deste modo, não parece que tal prática integre o património cultural português, ao contrário do sustentado pelo STJ. Contudo, mesmo que assim não fosse, os usos só são fonte de direito quando tal for determinado por lei (artigo 3.º do Código Civil), o que não sucede.
Por outro lado, o intérprete não deve levar a cabo a sua tarefa “com os olhos postos no passado”, mas sim de acordo com uma perspectiva actualista. Com efeito, não é admissível que não seja tida em linha de conta a tendência cada vez mais acentuada de protecção dos animais e à qual os Legisladores de alguns países europeus têm, inclusive, dedicado algum labor. Efectivamente, em alguns ordenamentos jurídicos que tradicionalmente exercem forte influência no nosso direito, os animais já não são tratados como coisas pelo direito civil. Podemos apontar a título de exemplo os casos da Alemanha, Áustria, e França onde os animais passaram a distinguir-se claramente das coisas, ficando sujeitos a regras especiais que têm em vista a sua protecção. Criou-se, deste modo, um terceiro género (quebrando-se a dualidade pessoa/coisa): no entender de Rolf Steding, o animal passou a ser reconhecido como criatura, sendo por isso mais protegido que uma coisa. No plano do direito comunitário é de realçar o Protocolo Anexo ao Tratado de Amesterdão relativo ao Bem-Estar Animal, que vigora na ordem interna à luz do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Não é de maneira alguma despiciendo referir a Declaração Universal dos Direitos do Animal, aprovada em 15 de Outubro de 1978, pela Liga Internacional dos Direitos do Animal, tendo sido posteriormente adoptada pela UNESCO e pela ONU. Notoriamente influenciada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos do Animal vem consagrar verdadeiros direitos fundamentais dos animais e tem carácter universal. Sendo inicialmente vista como uma mera carta de intenções, portanto, sem qualquer vinculatividade, tem sido mais recentemente apontada – entre outros, pelo Prof. Bacelar Gouveia – como um dos exemplos paradigmáticos de costume internacional, impondo-se desta forma na ordem interna como Direito Comum, nos termos da recepção automática consagrada no artigo 8.º, n.º 1, da Constituição.
Deste modo, à luz de uma perspectiva actualista, temos que as disposições legais – em particular aquelas que se referem especificamente à protecção dos animais – devem ser interpretadas de forma a melhor protegerem os animais. Essa protecção só deve ceder, sempre na medida do indispensável, quando entrem em linha de conta bens jurídicos de primeira importância para o Homem. Não é, pois, evidentemente o que sucede no caso de actividades lúdicas, ainda que cobertas pelo pomposo manto da cultura. Para além do mais, nem tudo aquilo que se diz ser cultura, é Cultura!
A minha posição, de jure condito, é pois no sentido da inadmissibilidade de toda e qualquer prática que implique violência sobre animais com o único propósito de satisfazer necessidades lúdicas do Homem, como é o caso da actividade desportiva de tiro aos pombos em voo.


IV. Seguidamente irei apresentar o meu ponto de vista acerca da forma como penso que o Direito deveria tutelar os animais – trata-se, assim, e ao contrário da posição tomada no ponto anterior, de uma perspectiva de jure condendo.
Estamos perante um tema com fortes implicações sobre o direito do ambiente, uma vez que, sustentando-se a necessidade de uma tutela subjectiva dos animais, reforça-se o fundamento da tutela objectiva do ambiente – do qual aqueles se distinguem – (artigo 9.º, alínea e), da Constituição), em detrimento de uma concepção predominantemente antropocêntrica, porque baseada no direito fundamental das pessoas ao ambiente (artigo 66.º da Constituição).
Não queremos com isto subestimar a importância da existência de um modelo de tutela subjectivo para uma efectiva protecção do ambiente. Com efeito, a consagração de um direito subjectivo ao ambiente, sendo as pessoas escravas do seu egoísmo, vem a configurar-se como o principal motor do seu amparo.

É ponto cientificamente assente que os seres humanos são animais, integrando assim o Reino Animalia.
Podemos definir animal como ser organizado, dotado de sensibilidade e de movimento voluntário.
Geralmente, dentro do Reino dos Animais, procede-se a uma distinção entre aqueles que são dotados de racionalidade – os seres humanos – e aqueloutros que o não são – as restantes espécies. Todavia, em bom rigor científico, tal distinção é desprovida de qualquer validade, devendo-se mais uma vez ao facto de o Homem se considerar o centro do Universo – o que tem origem na Religião e não na Ciência. Com efeito, os mais recentes estudos apontam para que a linha da racionalidade seja transversal a todas as espécies, havendo diferenças somente a nível quantitativo, e não qualitativo.
A perspectiva antropocêntrica enraizada na Humanidade funda-se no criacionismo que, por sua vez, tem origem religiosa. A teoria criacionista tem como base o argumento de que o Homem foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança, num acto de criação distinto, tendo tudo o resto sido criado com o único intuito de o servir. Esta tese original tem sofrido algumas ramificações em virtude do avanço científico mas que em nada alteram a sua essência.
Pelo contrário, a teoria evolutiva, fortemente impulsionada pela famosa obra de Charles Darwin, A Origem das Espécies, publicada em 1859, postula que a evolução biológica ocorre através do mecanismo de selecção natural, combinado com a hereditariedade Mendeliana – consubstanciando a síntese evolutiva moderna –, partindo do pressuposto de que todas as espécies da Terra descendem de um ancestral comum. Assim, as espécies actualmente existentes atravessam um determinado estádio evolutivo, resultando a sua diversidade de uma longa série de eventos de expeciação e extinção.
É evidente que uma tese com estes contornos fere a dignidade paradivina do ser humano, enquanto único “filho de Deus” e, consequentemente, ser superior do Universo. É esta divinização que leva ao antropocentrismo que, por seu turno, acarreta a concepção do Homem como única espécie racional. De tudo isto decorre a especial dignidade da pessoa humana que legitima um atropelamento sem escrúpulos da de todas as outras espécies – de facto, estas não passam de meros instrumentos ao serviço do Homem.
Ora, todas estas concepções são absolutamente inaceitáveis, só tendo cabimento em mentes “castradas” pelos fundamentalismos religiosos. Não deixa de ser curioso notar que tendo-se como verdadeira a teoria da origem comum, todos os seres vivos deveriam ser considerados exactamente da mesma forma aos olhos de um eventual Deus criador. Charles Darwin reconhece expressamente que o aspecto mais controverso do pensamento evolutivo é a sua implicação para a origem dos seres humanos, com todas as consequências que daquele advêm. Estaria, deste modo, afastada a especial dignidade do Homem. Com efeito, nas conclusões de A Origem das Espécies, Darwin escreve que “quando penso neles, não como criações especiais, mas como descendentes directos dum punhado de seres que viveu muito antes do primeiro estrato do sistema silúrico ter sido depositado, todos os seres me parecem mais nobres”.
Refutada que está a divindade do Homem, como principal fundamento atributivo de uma especial dose de dignidade relativamente a todas as outras espécies, vamos agora averiguar se a dita inexistência de racionalidade justifica a negação de todo e qualquer direito a estas. Na minha opinião, o facto de uma espécie com o grau de racionalidade do Homem exercer, por isso, um ascendente de facto sobre as outras deve ser visto, não como uma fonte de direitos, mas como uma fonte de responsabilidades. Com efeito, se eu tenho o poder de controlar outro, não me devo sentir no direito de o fazer a meu bel-prazer, mas sempre tendo em conta a existência desse outro, o que postula um princípio de respeito orientador das relações do Homem com as restantes espécies. Princípio que terá de ser temperado com um outro que lhe está acima – porque faz parte da própria Natureza – que é o da sobrevivência das espécies, no sentido de que não se pode exigir a nenhuma, nem à Humanidade, o seu sacrifício em prol da subsistência de outra.
Não consigo, desta maneira, vislumbrar qualquer fundamento que me leve a crer ter a minha vida mais valor do que a de qualquer outra espécie. Pergunte-se: surgindo por qualquer via uma espécie dotada de um maior quantum de racionalidade do que o Homem, sentiria este o valor da sua vida depreciado em prol da vida desta nova espécie? Seria esta espécie mais filha do referido Deus do que o Homem, não passando este de um bastardo? É seguro que não. Pois bem, os animais não-humanos também não são filhos bastardos de (um eventual) Deus.

Depois de termos tecido estas breves considerações, pressentimos ser seguro e firme o terreno que está diante de nós, e daremos mais um passo, que na realidade não será mais do que deixar escorrer as consequências naturais de tudo aquilo que se disse.
Como já referimos, de acordo com o direito português vigente, os animais são considerados coisas móveis, conforme o disposto nos artigos 202.º, 204.º, a contrário, e 205.º, do Código Civil. Como tais, podem ser objecto de relações jurídicas (artigo 202.º, n.º 1).
Desta classificação decorre a consagração de uma tutela objectiva, nos termos da qual os animais são protegidos mediante a vinculação das pessoas à observância de determinados deveres para com eles. Vigora ainda de forma predominante a ideia de que as normas que visam proteger os animais têm como fim último a “defesa da comunidade de pessoas face ao desconforto de terem de percepcionar a desumanidade de algumas”. Por isso se diz que os benefícios dos animais são meramente reflexos, permitindo praticamente que se fale – em linguagem microeconómica – de uma externalidade positiva, o que é manifestamente ridículo, ainda para mais quando estamos perante legislação que visa expressamente proteger os animais.
No pólo oposto, alguns autores têm avançado com propostas de atribuição de personalidade jurídica aos animais, mediante um raciocínio algo análogo ao que fundamenta a existência de pessoas colectivas. Pretende-se com isso dotar os animais de verdadeiros direitos subjectivos, entendendo-se ser essa a única espécie de tutela que se coaduna com a sua natureza.
Outros autores existem que, situando-se a meio caminho entre os primeiros e os segundos, se opõem à personificação dos animais, chamando todavia a atenção para a existência de determinadas regras que só podem ter como fundamento a atribuição de prerrogativas aos animais, separando desta forma a tutela destes da tutela do ambiente.
O maior obstáculo que se levanta à atribuição de personalidade jurídica aos animais reside, não no facto de os animais serem desprovidos de razão, mas de efectivamente não terem a racionalidade humana. O Direito foi criado com o fim de regular relações humanas, e a personalidade jurídica, que se define como a susceptibilidade de se ser titular de direitos e obrigações e, portanto, sujeito de relações jurídicas, foi pensada em função do Homem. A existência de direitos subjectivos sempre foi vista em função da vinculação a determinados deveres. Ora, como é óbvio, os animais não são capazes de cumprir quaisquer deveres, desde logo porque não têm consciência dos mesmos; por isso, não podem ser sujeitos de direito em termos análogos ao Homem.
Contudo, isto não deve obstar a que se lhes reconheça determinados direitos subjectivos, com carácter fundamental, que visam tutelar bens jurídicos inerentes à sua existência. Direitos como o direito à vida, à integridade física e psíquica, à saúde e ao bem-estar e até ao respeito, têm plena justificação nos animais. Com efeito, os bens jurídicos fundamentais que justificam a existência destes direitos existem em igual medida em todos os animais, incluindo o Homem. O fundamento para a sua atribuição reside, pois, na própria vida, na existência e no ser. E é certo que todos os animais, sem excepção, existem, vivem e são!
Defendemos, deste modo, a criação e atribuição de uma personalidade jurídica sui generis aos animais, cuja especificidade reside precisamente na insusceptibilidade de serem titulares de quaisquer obrigações. O objectivo não é fazer dos animais autênticos sujeitos de direito, a par do Homem, mas o de tutelar determinados bens jurídicos que partilha com este.
O facto de os animais serem incapazes de exercer os seus direitos não levanta qualquer tipo de problema novo, para o qual o Direito não tenha já dado resposta. Com efeito, a incapacidade verifica-se também em algumas pessoas, sem que por isso lhes seja recusada a tutela dos seus direitos subjectivos. Tal facto é facilmente contornável recorrendo ao instituto jurídico da representação. Na prática, o suprimento da incapacidade caberá a quem tiver especiais deveres de protecção para com o animal, como o seu dono, ou na falta deste, a associações que tenham por finalidade a protecção dos animais – é o que já se verifica na situação prevista no artigo 10.º da Lei n.º 92/95 de 12 de Setembro.
É de referir que a tutela subjectiva que se preconiza não inviabiliza que os animais sejam objecto de relações jurídicas, na medida em que os seus direitos sejam salvaguardados.

V. De tudo o que fica dito se conclui pela inaceitabilidade da actual perspectiva antropocêntrica da tutela do ambiente. A tutela subjectiva dos animais que faz com que desde logo estes deixem de ser vistos como mero complemento do ambiente (artigos 6.º, alínea f), e 16.º, da Lei n.º 11/87 de 7 de Abril), implica que se dê uma nova importância dogmática à tutela objectiva do ambiente, enquanto bem comum, necessário, esgotável e insubstituível. Neste contexto, é de assinalar que algumas práticas humanas, desrespeitadoras do ambiente e dos animais, levaram a que as taxas de extinção actuais sejam de 100 a 1000 vezes superiores às taxas de extinção normais, sendo que até 30% das espécies podem estar extintas até meados deste século.

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