O CRIME DE DANOS CONTRA A NATUREZA (ARTIGO 278.º DO CÓDIGO PENAL)
0 comentários Publicada por Subturma 1 + 5 à(s) 15:53Artigo 278.º
(Danos contra a natureza)
1. Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo, de forma grave, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 600 dias.
2. Para os efeitos do número anterior o agente actua de forma grave quando:
a) Fizer desaparecer ou contribuir decisivamente para fazer desaparecer uma ou mais espécies animais ou vegetais de certa região;
b) Da destruição resultarem perdas importantes nas populações de espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas;
c) Esgotar ou impedir a renovação de um recurso do subsolo em toda uma área regional.
3. Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
É hoje incontestável a natureza do ambiente como bem jurídico fundamental, materializada nos nossos já bem conhecidos artigos 9.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa. Constituindo o direito penal a última e mais acerada forma de reacção por parte da ordem jurídica contra violações especialmente graves dos referidos bens jurídicos, temos deste modo preenchidos todos os pressupostos necessários para a criminalização de condutas atentatórias do ambiente. É neste seguimento que surge − com o DL 48/95, de 15 de Março − o tipo legal de crime constante do artigo 278.º do Código Penal (CP), que nos propomos a analisar.
Nos termos do artigo 278.º, n.º 1, “quem, não observando disposições legais ou regulamentares, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo, de forma grave, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
O bem jurídico tutelado é, pois, o ambiente, integrando-se o tipo legal em análise no complexo dos denominados crimes contra o ambiente − artigos 278.º a 281.º do CP.
Quanto ao tipo objectivo de ilícito, da leitura do preceito resultam desde logo claros dois aspectos: em primeiro lugar, estamos perante um dos casos em que o direito penal surge com uma função acessória relativamente ao direito administrativo, uma vez que se faz depender a punição da inobservância de normas regulamentares; em segundo lugar, a determinação do conteúdo da norma é feita mediante remissão a “disposições legais ou regulamentares”, pelo que se trata de norma penal em branco.
No que concerne à questão da acessoriedade do direito penal relativamente ao direito administrativo, surge a problemática de saber quais os requisitos a que o acto administrativo − no nosso caso o regulamento − está sujeito de modo a que a sua violação seja apta à afirmação da tipicidade da conduta do agente. Em primeira linha, deve entender-se que nunca preenche o tipo objectivo de ilícito o agente que viola um acto administrativo inválido ou ineficaz. Por outro lado, como defende a Professora Fernanda Palma, a validade do acto administrativo não deve ser aferida exclusivamente em função de critérios administrativos, mas também segundo critérios de direito penal, ou seja, de danosidade social.
Prosseguindo na análise da factualidade típica, podemos dizer que temos três situações que constituem a base do tipo objectivo: a) eliminação de exemplares de fauna (conjunto de todos os animais) ou flora (universo das espécies vegetais); b) destruição de habitat natural (condições ambientais de que dependem a vida, desenvolvimento e reprodução de determinadas espécies); c) esgotamento de recursos do subsolo (recursos naturais existentes na crosta terrestre integrantes das categorias de depósitos minerais, recursos hidrominerais, recursos geotérmicos, massas minerais e águas de nascente).
Com efeito, para que haja preenchimento do tipo objectivo de ilícito não basta que o agente, com a sua conduta, tenha provocado um dos resultados acabados de referir, mas que o tenha feito de forma grave, o que sucederá quando: “fizer desaparecer ou contribuir decisivamente para fazer desaparecer uma ou mais espécies animais ou vegetais de certa região” [n.º 2, al. a)]; “da destruição resultarem perdas importantes nas populações de espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas” [n.º 2, al. b)]; “esgotar ou impedir a renovação de um recurso do subsolo em toda uma área regional” [n.º 2, al. c)]. O n.º 2 vem, pois, concretar o que deva entender-se por forma grave de produção dos resultados previstos no n.º 1; efectivamente, só nos casos em que estes últimos forem gerados nos moldes acabados de referir é que se poderá afirmar a tipicidade da conduta do agente.
Em relação à tipicidade subjectiva, iremos unicamente referir que se admite o preenchimento do tipo legal tanto a título doloso como negligente − a esta última hipótese se refere o n.º 3.
Também não se afigura de todo despiciendo fazer notar que são configuráveis hipóteses de concurso efectivo entre o crime em análise e os previstos nos artigos 279.º (poluição) e 280.º (poluição com perigo comum).
Por fim, no que toca à moldura penal, temos que se o crime for praticado dolosamente o agente será punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias (n.º 1); se, pelo contrário, se verificar a negligência do tipo, o n.º 3 prevê pena de prisão até um ano ou pena de multa.
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A impugnação de actos lesivos do ambiente em sede de recurso de anulação (artigo 230.º do TCE)
0 comentários Publicada por Subturma 1 + 5 à(s) 18:13Foi com a entrada em vigor do Acto Único Europeu, em 1987, que a Comunidade Europeia despertou formalmente para a problemática da protecção do ambiente. Actualmente, a política comunitária neste domínio vem prevista nos artigos 174.º e seguintes do Tratado da Comunidade Europeia (TCE).
Constituindo a tutela do meio ambiente uma das matérias cada vez mais importantes do acervo comunitário, vamos tratar de averiguar quais as possibilidades que o actual direito comunitário reserva, em especial aos particulares, de impugnarem actos lesivos do ambiente por via do meio contencioso de fiscalização da legalidade por excelência, ou seja, o recurso de anulação (artigo 230.º do TCE).
O recurso de anulação é, pois, um dos meios contenciosos destinados a fiscalizar a legalidade dos actos que produzam efeitos jurídicos adoptados pelas instituições comunitárias – os outros são, como se sabe, a acção de omissão (artigo 232.º) e a excepção de ilegalidade (artigo 241.º) – estando previsto no artigo 230.º do TCE. Nos termos do 2.º parágrafo deste artigo, um dos fundamentos do recurso reside na “violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação”; assim, qualquer acto comunitário, que não seja recomendação ou parecer (parágrafo 1.º), e que atente contra as acima referidas disposições relativas ao ambiente, poderá ser impugnado com esta base. Da segunda parte transcrita do preceito resulta que os actos adoptados terão igualmente de se conformar com o direito derivado obrigatório e com os acordos internacionais em que a Comunidade seja parte.
No concernente à legitimidade activa para recorrer, dimana do artigo em análise uma tripartição que se concretiza na distinção entre recorrentes privilegiados – que não têm de provar o interesse em agir –, não privilegiados – que têm de fazer prova desse interesse – e semi-privilegiados – com legitimidade na medida que esteja em causa a salvaguarda das suas prerrogativas. Integram a primeira categoria as instituições comunitárias previstas no 2.º parágrafo do artigo 230.º, bem como os Estados-membros, e da segunda os particulares, conforme o disposto no 4.º parágrafo.
Da leitura do último parágrafo referido rapidamente se percebe o porquê da qualificação dos particulares como recorrentes não privilegiados. Os particulares podem valer-se do recurso de anulação em duas situações: tratando-se de decisão expressamente dirigida a um ou mais; ou estando em causa as denominadas “decisões camufladas” ou as “decisões por ricochete”, tendo o particular de demonstrar a existência de interesse directo e individual. Como não podia deixar de ser, o Tribunal de Justiça (TJ) tratou de concretizar ambos os conceitos. Quanto ao interesse individual, na esteira da jurisprudência Plaumann (1963), “os sujeitos que não sejam destinatários de uma decisão só podem ser individualmente afectados se essa decisão os atingir em razão de certas qualidades que lhes são particulares ou de uma situação de facto que os caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e que este facto os individualize de maneira análoga à do destinatário”. Tudo isto foi recentemente alargado aos actos de alcance geral pelo Acórdão Camar e Tico (2002). Em relação à constatação do interesse directo, o TJ adoptou como critério a mediação de um poder discricionário de um Estado, ou seja, poder-se-á afirmar o interesse directo do particular quando o acto lhe priva direitos ou imponha obrigações só por si, sem qualquer acto executório estadual ou comunitário. Conclui-se, pois, que o acesso dos particulares ao recurso de anulação é bastante laborioso.
Um dos casos em que o TJ negou a existência dos interesses individual e directo foi o constante do Acórdão Greenpeace (1998). Estava em causa a impugnação por um conjunto de associações ambientais de uma decisão da Comissão que concedia um financiamento comunitário para a construção de duas centrais eléctricas nas Ilhas Canárias. Tendo em conta a concretização feita pelo TJ dos conceitos de interesse directo e individual não custa vaticinar a dificuldade que será a afirmação dos mesmos numa situação em que esteja em causa um acto prejudicial ao ambiente e, consequentemente, ao direito fundamental ao ambiente – todavia, quanto a este ponto, temos desde logo um problema estrutural que resulta do facto de a tutela comunitária do ambiente ser essencialmente objectiva, concedendo-se o papel activo às instituições comunitárias e aos Estados membros. Procurando contornar estes obstáculos, os recorrentes, numa tentativa muito digna, defenderam e ofereceram as linhas de reformulação do conceito de interesse individual quando estivesse em causa um acto lesivo do ambiente nos seguintes termos: “para considerar que um determinado recorrente é individualmente afectado por um acto da Comunidade que implique violação de obrigações comunitárias em matéria de ambiente, este deverá demonstrar que satisfaz as três condições seguintes: a) ter sofrido pessoalmente (ou ser susceptível de sofrer pessoalmente) um prejuízo efectivo ou potencial por causa do comportamento alegadamente ilegal da instituição comunitária em causa, por exemplo, uma violação dos seus direitos em matéria de ambiente ou uma ofensa dos seus interesses em matéria de ambiente, b) que o prejuízo sofrido possa ser imputado ao acto impugnado, c) que o prejuízo seja susceptível de ser reparado por um acórdão favorável”.
Não obstante a razoabilidade da argumentação acabada de transcrever, o TJ mostrou-se irredutível, e manteve a sua jurisprudência anterior. Com efeito, o interesse individual concebido pelas associações ambientais não se enquadra naqueloutro resultante do Acórdão Plaumann. Seria necessário que o acto individualizasse os particulares de forma análoga aos destinatários em razão nomeadamente de uma determinada situação fáctica que os diferenciasse relativamente a qualquer outros, e isso não sucede no caso em apreço. Por outro lado, e sendo propósito dos recorrentes promover o princípio da tutela jurisdicional efectiva, não deixa de ser curioso atentar no facto de que se as suas pretensões fossem atendidas pelo Tribunal, acabar-se-ia por dar um duro golpe no referido princípio, tal seria a quantidade de recursos interpostos por particulares que sentiam terem sido violados os seus direitos subjectivos ao ambiente.
Mais plausível no actual quadro legal se afigura a tese ensaiada pelo Advogado-Geral COSMOS, nos termos da qual seria possível afirmar-se a existência de interesse individual das pessoas que fossem afectadas em especial pelo acto danoso do ambiente, recorrendo para tal a um critério de proximidade geográfica daquelas em relação ao centro de impacto daquele. O facto de determinadas pessoas se inserirem num “círculo fechado” faria com que se pudesse afirmar a existência de uma situação de facto que as caracteriza relativamente a quaisquer outras, daí resultando a sua legitimidade para impugnar o acto nos termos do artigo 230.º, par. 4.º, do TCE. Tal concepção elimina, pelo menos em parte, o problema existente na anterior relativo ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, uma vez que o universo de particulares com uma pretensa legitimidade activa seria bastante mais estrito.
Bem vistas as coisas, como bem nota a Dr.ª Carla Amado Gomes, o grande préstimo do Acórdão Greenpeace acaba por ser o “de alertar para um vazio de protecção jurídica no âmbito comunitário no que toca a interesses colectivos, insusceptíveis de acolhimento, quer na letra, quer no espírito, do par. 4.º do artigo 230.º do TCE”. Partilhamos, pois, da opinião da autora de que, em situações deste teor, urge alargar a legitimidade activa a associações que se destinem a zelar por bens colectivos, como é o caso do ambiente. Esta será, pois, a melhor forma de alargar aos particulares a possibilidade de impugnarem actos atentatórios de um bem colectivo sem afectar – antes pelo contrário, promovendo – o referido princípio da tutela jurisdicional efectiva, centro de preocupações do Tribunal de Justiça.
Até lá, todavia, no concernente a todos os actos comunitários em relação aos quais não seja possível “desenhar” um círculo fechado nos moldes acima expostos, resta depositar as nossas esperanças – tal como fez o Legislador comunitário − na sensibilidade ecológica e, acima de tudo, no empenho em zelar pelo cumprimento do direito comunitário, dos designados recorrentes privilegiados, ou seja, os Estados-Membros, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. Com efeito, deverão assumir com especial acuidade as funções de principais fiscalizadores de intervenções comunitárias lesivas, ainda que em potência, do ambiente.
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I. A matéria de que se vai tratar prende-se com a problemática – cada vez mais viva – dos direitos dos animais ou, optando por partir de uma formulação mais pacífica, da protecção dos animais.
Tendo em conta esse fim, vamos tomar como ponto de partida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19 de Outubro de 2004, cujo objecto é precisamente o da tutela dos animais. Mais concretamente, colocou-se àquele Tribunal a questão de saber se a actividade desportiva de tiro com chumbo aos pombos em voo é lícita, ou ilícita, à luz do direito português vigente.
II. Para a resolução do problema o STJ parte da análise do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, relativa à protecção aos animais. Nos termos deste preceito “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”.
Na interpretação da norma jurídica em causa, o Tribunal, atribuindo especial importância ao elemento teleológico, considera que “o fim da lei é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins envolvidos em função do Homem”. Tendo – erroneamente – por assente que a referida prática não causa “sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões” aos pombos, o STJ refere que a chave de resolução do caso reside na “ponderação de valores sociais envolvidos no conceito indeterminado de necessidade” constante da norma. E considera que este se traduz no “resultado de uma valoração de confronto entre a prevenção dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade”.
Fundando a solução dada ao caso na tradição e relevância da actividade de tiro aos pombos em voo (que considera integrante do património cultural português, em termos análogos ao que sucede com a arte equestre ou as touradas), o STJ conclui que “há no caso espécie justificação e utilidade para a e na morte dos pombos […] e para o sofrimento que isso lhes implica, que se não revela cruel”. A prática em causa seria, assim, licita nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95.
Cumpre ainda fazer uma breve referência à solução dada ao mesmo caso pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Ao contrário do sustentado pelo STJ, este Tribunal considerou que “a actividade de tiro levada a cabo pela recorrente e coordenada pela Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça é ilícita, no actual ordenamento jurídico português, tendo em conta a interpretação da Lei n.º 92/95 de 12/9, à luz da perspectiva actualista”. É também esta a minha posição, como tentarei demonstrar de seguida.
III. Na análise deste caso devemos ter de facto como principal referência normativa o artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, que tem como epígrafe “medidas gerais de protecção”. A presente lei é fruto da recente tomada de consciência da necessidade de protecção dos animais que, porque dotados de sensibilidade, não podem ser vistos como meras coisas, como resulta do nosso actual direito civil.
O referido preceito consagra uma proibição geral de toda e qualquer violência injustificada contra animais. Concretizando, considera como tal o acto desnecessário que tenha como consequência a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões para um animal.
No n.º 3 do mesmo artigo, excepciona-se das específicas proibições aí consagradas a arte equestre, as touradas, a investigação científica de comprovada necessidade e a caça. Ora, como bem nota o Dr. André Dias Pereira, a actividade desportiva de tiro aos pombos não se encontra abrangida por qualquer uma das referidas cláusulas de excepção, pelo que cai no âmbito da proibição geral constante do n.º 1 do artigo 1.º.
Todavia, o autor da anotação ao Acórdão do STJ, parece tomar o argumento de substituibilidade da actividade de tiro aos pombos em voo pela de tiro aos pratos e/ou às hélices como determinante, justificando, assim, a ilicitude daquela prática pela sua desnecessidade. Não me parece que, estando em causa actividades eminentemente lúdicas, seja razoável ter como critério fundamentador da licitude/ilicitude da actividade o de substituibilidade dos animais por meras coisas.
Surgem também obstáculos quanto à qualificação da actividade de tiro aos pombos em voo como tradição, em virtude de ser praticado por um número escasso de clubes de tiro em Portugal. Deste modo, não parece que tal prática integre o património cultural português, ao contrário do sustentado pelo STJ. Contudo, mesmo que assim não fosse, os usos só são fonte de direito quando tal for determinado por lei (artigo 3.º do Código Civil), o que não sucede.
Por outro lado, o intérprete não deve levar a cabo a sua tarefa “com os olhos postos no passado”, mas sim de acordo com uma perspectiva actualista. Com efeito, não é admissível que não seja tida em linha de conta a tendência cada vez mais acentuada de protecção dos animais e à qual os Legisladores de alguns países europeus têm, inclusive, dedicado algum labor. Efectivamente, em alguns ordenamentos jurídicos que tradicionalmente exercem forte influência no nosso direito, os animais já não são tratados como coisas pelo direito civil. Podemos apontar a título de exemplo os casos da Alemanha, Áustria, e França onde os animais passaram a distinguir-se claramente das coisas, ficando sujeitos a regras especiais que têm em vista a sua protecção. Criou-se, deste modo, um terceiro género (quebrando-se a dualidade pessoa/coisa): no entender de Rolf Steding, o animal passou a ser reconhecido como criatura, sendo por isso mais protegido que uma coisa. No plano do direito comunitário é de realçar o Protocolo Anexo ao Tratado de Amesterdão relativo ao Bem-Estar Animal, que vigora na ordem interna à luz do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Não é de maneira alguma despiciendo referir a Declaração Universal dos Direitos do Animal, aprovada em 15 de Outubro de 1978, pela Liga Internacional dos Direitos do Animal, tendo sido posteriormente adoptada pela UNESCO e pela ONU. Notoriamente influenciada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos do Animal vem consagrar verdadeiros direitos fundamentais dos animais e tem carácter universal. Sendo inicialmente vista como uma mera carta de intenções, portanto, sem qualquer vinculatividade, tem sido mais recentemente apontada – entre outros, pelo Prof. Bacelar Gouveia – como um dos exemplos paradigmáticos de costume internacional, impondo-se desta forma na ordem interna como Direito Comum, nos termos da recepção automática consagrada no artigo 8.º, n.º 1, da Constituição.
Deste modo, à luz de uma perspectiva actualista, temos que as disposições legais – em particular aquelas que se referem especificamente à protecção dos animais – devem ser interpretadas de forma a melhor protegerem os animais. Essa protecção só deve ceder, sempre na medida do indispensável, quando entrem em linha de conta bens jurídicos de primeira importância para o Homem. Não é, pois, evidentemente o que sucede no caso de actividades lúdicas, ainda que cobertas pelo pomposo manto da cultura. Para além do mais, nem tudo aquilo que se diz ser cultura, é Cultura!
A minha posição, de jure condito, é pois no sentido da inadmissibilidade de toda e qualquer prática que implique violência sobre animais com o único propósito de satisfazer necessidades lúdicas do Homem, como é o caso da actividade desportiva de tiro aos pombos em voo.
IV. Seguidamente irei apresentar o meu ponto de vista acerca da forma como penso que o Direito deveria tutelar os animais – trata-se, assim, e ao contrário da posição tomada no ponto anterior, de uma perspectiva de jure condendo.
Estamos perante um tema com fortes implicações sobre o direito do ambiente, uma vez que, sustentando-se a necessidade de uma tutela subjectiva dos animais, reforça-se o fundamento da tutela objectiva do ambiente – do qual aqueles se distinguem – (artigo 9.º, alínea e), da Constituição), em detrimento de uma concepção predominantemente antropocêntrica, porque baseada no direito fundamental das pessoas ao ambiente (artigo 66.º da Constituição).
Não queremos com isto subestimar a importância da existência de um modelo de tutela subjectivo para uma efectiva protecção do ambiente. Com efeito, a consagração de um direito subjectivo ao ambiente, sendo as pessoas escravas do seu egoísmo, vem a configurar-se como o principal motor do seu amparo.
É ponto cientificamente assente que os seres humanos são animais, integrando assim o Reino Animalia.
Podemos definir animal como ser organizado, dotado de sensibilidade e de movimento voluntário.
Geralmente, dentro do Reino dos Animais, procede-se a uma distinção entre aqueles que são dotados de racionalidade – os seres humanos – e aqueloutros que o não são – as restantes espécies. Todavia, em bom rigor científico, tal distinção é desprovida de qualquer validade, devendo-se mais uma vez ao facto de o Homem se considerar o centro do Universo – o que tem origem na Religião e não na Ciência. Com efeito, os mais recentes estudos apontam para que a linha da racionalidade seja transversal a todas as espécies, havendo diferenças somente a nível quantitativo, e não qualitativo.
A perspectiva antropocêntrica enraizada na Humanidade funda-se no criacionismo que, por sua vez, tem origem religiosa. A teoria criacionista tem como base o argumento de que o Homem foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança, num acto de criação distinto, tendo tudo o resto sido criado com o único intuito de o servir. Esta tese original tem sofrido algumas ramificações em virtude do avanço científico mas que em nada alteram a sua essência.
Pelo contrário, a teoria evolutiva, fortemente impulsionada pela famosa obra de Charles Darwin, A Origem das Espécies, publicada em 1859, postula que a evolução biológica ocorre através do mecanismo de selecção natural, combinado com a hereditariedade Mendeliana – consubstanciando a síntese evolutiva moderna –, partindo do pressuposto de que todas as espécies da Terra descendem de um ancestral comum. Assim, as espécies actualmente existentes atravessam um determinado estádio evolutivo, resultando a sua diversidade de uma longa série de eventos de expeciação e extinção.
É evidente que uma tese com estes contornos fere a dignidade paradivina do ser humano, enquanto único “filho de Deus” e, consequentemente, ser superior do Universo. É esta divinização que leva ao antropocentrismo que, por seu turno, acarreta a concepção do Homem como única espécie racional. De tudo isto decorre a especial dignidade da pessoa humana que legitima um atropelamento sem escrúpulos da de todas as outras espécies – de facto, estas não passam de meros instrumentos ao serviço do Homem.
Ora, todas estas concepções são absolutamente inaceitáveis, só tendo cabimento em mentes “castradas” pelos fundamentalismos religiosos. Não deixa de ser curioso notar que tendo-se como verdadeira a teoria da origem comum, todos os seres vivos deveriam ser considerados exactamente da mesma forma aos olhos de um eventual Deus criador. Charles Darwin reconhece expressamente que o aspecto mais controverso do pensamento evolutivo é a sua implicação para a origem dos seres humanos, com todas as consequências que daquele advêm. Estaria, deste modo, afastada a especial dignidade do Homem. Com efeito, nas conclusões de A Origem das Espécies, Darwin escreve que “quando penso neles, não como criações especiais, mas como descendentes directos dum punhado de seres que viveu muito antes do primeiro estrato do sistema silúrico ter sido depositado, todos os seres me parecem mais nobres”.
Refutada que está a divindade do Homem, como principal fundamento atributivo de uma especial dose de dignidade relativamente a todas as outras espécies, vamos agora averiguar se a dita inexistência de racionalidade justifica a negação de todo e qualquer direito a estas. Na minha opinião, o facto de uma espécie com o grau de racionalidade do Homem exercer, por isso, um ascendente de facto sobre as outras deve ser visto, não como uma fonte de direitos, mas como uma fonte de responsabilidades. Com efeito, se eu tenho o poder de controlar outro, não me devo sentir no direito de o fazer a meu bel-prazer, mas sempre tendo em conta a existência desse outro, o que postula um princípio de respeito orientador das relações do Homem com as restantes espécies. Princípio que terá de ser temperado com um outro que lhe está acima – porque faz parte da própria Natureza – que é o da sobrevivência das espécies, no sentido de que não se pode exigir a nenhuma, nem à Humanidade, o seu sacrifício em prol da subsistência de outra.
Não consigo, desta maneira, vislumbrar qualquer fundamento que me leve a crer ter a minha vida mais valor do que a de qualquer outra espécie. Pergunte-se: surgindo por qualquer via uma espécie dotada de um maior quantum de racionalidade do que o Homem, sentiria este o valor da sua vida depreciado em prol da vida desta nova espécie? Seria esta espécie mais filha do referido Deus do que o Homem, não passando este de um bastardo? É seguro que não. Pois bem, os animais não-humanos também não são filhos bastardos de (um eventual) Deus.
Depois de termos tecido estas breves considerações, pressentimos ser seguro e firme o terreno que está diante de nós, e daremos mais um passo, que na realidade não será mais do que deixar escorrer as consequências naturais de tudo aquilo que se disse.
Como já referimos, de acordo com o direito português vigente, os animais são considerados coisas móveis, conforme o disposto nos artigos 202.º, 204.º, a contrário, e 205.º, do Código Civil. Como tais, podem ser objecto de relações jurídicas (artigo 202.º, n.º 1).
Desta classificação decorre a consagração de uma tutela objectiva, nos termos da qual os animais são protegidos mediante a vinculação das pessoas à observância de determinados deveres para com eles. Vigora ainda de forma predominante a ideia de que as normas que visam proteger os animais têm como fim último a “defesa da comunidade de pessoas face ao desconforto de terem de percepcionar a desumanidade de algumas”. Por isso se diz que os benefícios dos animais são meramente reflexos, permitindo praticamente que se fale – em linguagem microeconómica – de uma externalidade positiva, o que é manifestamente ridículo, ainda para mais quando estamos perante legislação que visa expressamente proteger os animais.
No pólo oposto, alguns autores têm avançado com propostas de atribuição de personalidade jurídica aos animais, mediante um raciocínio algo análogo ao que fundamenta a existência de pessoas colectivas. Pretende-se com isso dotar os animais de verdadeiros direitos subjectivos, entendendo-se ser essa a única espécie de tutela que se coaduna com a sua natureza.
Outros autores existem que, situando-se a meio caminho entre os primeiros e os segundos, se opõem à personificação dos animais, chamando todavia a atenção para a existência de determinadas regras que só podem ter como fundamento a atribuição de prerrogativas aos animais, separando desta forma a tutela destes da tutela do ambiente.
O maior obstáculo que se levanta à atribuição de personalidade jurídica aos animais reside, não no facto de os animais serem desprovidos de razão, mas de efectivamente não terem a racionalidade humana. O Direito foi criado com o fim de regular relações humanas, e a personalidade jurídica, que se define como a susceptibilidade de se ser titular de direitos e obrigações e, portanto, sujeito de relações jurídicas, foi pensada em função do Homem. A existência de direitos subjectivos sempre foi vista em função da vinculação a determinados deveres. Ora, como é óbvio, os animais não são capazes de cumprir quaisquer deveres, desde logo porque não têm consciência dos mesmos; por isso, não podem ser sujeitos de direito em termos análogos ao Homem.
Contudo, isto não deve obstar a que se lhes reconheça determinados direitos subjectivos, com carácter fundamental, que visam tutelar bens jurídicos inerentes à sua existência. Direitos como o direito à vida, à integridade física e psíquica, à saúde e ao bem-estar e até ao respeito, têm plena justificação nos animais. Com efeito, os bens jurídicos fundamentais que justificam a existência destes direitos existem em igual medida em todos os animais, incluindo o Homem. O fundamento para a sua atribuição reside, pois, na própria vida, na existência e no ser. E é certo que todos os animais, sem excepção, existem, vivem e são!
Defendemos, deste modo, a criação e atribuição de uma personalidade jurídica sui generis aos animais, cuja especificidade reside precisamente na insusceptibilidade de serem titulares de quaisquer obrigações. O objectivo não é fazer dos animais autênticos sujeitos de direito, a par do Homem, mas o de tutelar determinados bens jurídicos que partilha com este.
O facto de os animais serem incapazes de exercer os seus direitos não levanta qualquer tipo de problema novo, para o qual o Direito não tenha já dado resposta. Com efeito, a incapacidade verifica-se também em algumas pessoas, sem que por isso lhes seja recusada a tutela dos seus direitos subjectivos. Tal facto é facilmente contornável recorrendo ao instituto jurídico da representação. Na prática, o suprimento da incapacidade caberá a quem tiver especiais deveres de protecção para com o animal, como o seu dono, ou na falta deste, a associações que tenham por finalidade a protecção dos animais – é o que já se verifica na situação prevista no artigo 10.º da Lei n.º 92/95 de 12 de Setembro.
É de referir que a tutela subjectiva que se preconiza não inviabiliza que os animais sejam objecto de relações jurídicas, na medida em que os seus direitos sejam salvaguardados.
V. De tudo o que fica dito se conclui pela inaceitabilidade da actual perspectiva antropocêntrica da tutela do ambiente. A tutela subjectiva dos animais que faz com que desde logo estes deixem de ser vistos como mero complemento do ambiente (artigos 6.º, alínea f), e 16.º, da Lei n.º 11/87 de 7 de Abril), implica que se dê uma nova importância dogmática à tutela objectiva do ambiente, enquanto bem comum, necessário, esgotável e insubstituível. Neste contexto, é de assinalar que algumas práticas humanas, desrespeitadoras do ambiente e dos animais, levaram a que as taxas de extinção actuais sejam de 100 a 1000 vezes superiores às taxas de extinção normais, sendo que até 30% das espécies podem estar extintas até meados deste século.
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