Foi com a entrada em vigor do Acto Único Europeu, em 1987, que a Comunidade Europeia despertou formalmente para a problemática da protecção do ambiente. Actualmente, a política comunitária neste domínio vem prevista nos artigos 174.º e seguintes do Tratado da Comunidade Europeia (TCE).
Constituindo a tutela do meio ambiente uma das matérias cada vez mais importantes do acervo comunitário, vamos tratar de averiguar quais as possibilidades que o actual direito comunitário reserva, em especial aos particulares, de impugnarem actos lesivos do ambiente por via do meio contencioso de fiscalização da legalidade por excelência, ou seja, o recurso de anulação (artigo 230.º do TCE).
O recurso de anulação é, pois, um dos meios contenciosos destinados a fiscalizar a legalidade dos actos que produzam efeitos jurídicos adoptados pelas instituições comunitárias – os outros são, como se sabe, a acção de omissão (artigo 232.º) e a excepção de ilegalidade (artigo 241.º) – estando previsto no artigo 230.º do TCE. Nos termos do 2.º parágrafo deste artigo, um dos fundamentos do recurso reside na “violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação”; assim, qualquer acto comunitário, que não seja recomendação ou parecer (parágrafo 1.º), e que atente contra as acima referidas disposições relativas ao ambiente, poderá ser impugnado com esta base. Da segunda parte transcrita do preceito resulta que os actos adoptados terão igualmente de se conformar com o direito derivado obrigatório e com os acordos internacionais em que a Comunidade seja parte.
No concernente à legitimidade activa para recorrer, dimana do artigo em análise uma tripartição que se concretiza na distinção entre recorrentes privilegiados – que não têm de provar o interesse em agir –, não privilegiados – que têm de fazer prova desse interesse – e semi-privilegiados – com legitimidade na medida que esteja em causa a salvaguarda das suas prerrogativas. Integram a primeira categoria as instituições comunitárias previstas no 2.º parágrafo do artigo 230.º, bem como os Estados-membros, e da segunda os particulares, conforme o disposto no 4.º parágrafo.
Da leitura do último parágrafo referido rapidamente se percebe o porquê da qualificação dos particulares como recorrentes não privilegiados. Os particulares podem valer-se do recurso de anulação em duas situações: tratando-se de decisão expressamente dirigida a um ou mais; ou estando em causa as denominadas “decisões camufladas” ou as “decisões por ricochete”, tendo o particular de demonstrar a existência de interesse directo e individual. Como não podia deixar de ser, o Tribunal de Justiça (TJ) tratou de concretizar ambos os conceitos. Quanto ao interesse individual, na esteira da jurisprudência Plaumann (1963), “os sujeitos que não sejam destinatários de uma decisão só podem ser individualmente afectados se essa decisão os atingir em razão de certas qualidades que lhes são particulares ou de uma situação de facto que os caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e que este facto os individualize de maneira análoga à do destinatário”. Tudo isto foi recentemente alargado aos actos de alcance geral pelo Acórdão Camar e Tico (2002). Em relação à constatação do interesse directo, o TJ adoptou como critério a mediação de um poder discricionário de um Estado, ou seja, poder-se-á afirmar o interesse directo do particular quando o acto lhe priva direitos ou imponha obrigações só por si, sem qualquer acto executório estadual ou comunitário. Conclui-se, pois, que o acesso dos particulares ao recurso de anulação é bastante laborioso.
Um dos casos em que o TJ negou a existência dos interesses individual e directo foi o constante do Acórdão Greenpeace (1998). Estava em causa a impugnação por um conjunto de associações ambientais de uma decisão da Comissão que concedia um financiamento comunitário para a construção de duas centrais eléctricas nas Ilhas Canárias. Tendo em conta a concretização feita pelo TJ dos conceitos de interesse directo e individual não custa vaticinar a dificuldade que será a afirmação dos mesmos numa situação em que esteja em causa um acto prejudicial ao ambiente e, consequentemente, ao direito fundamental ao ambiente – todavia, quanto a este ponto, temos desde logo um problema estrutural que resulta do facto de a tutela comunitária do ambiente ser essencialmente objectiva, concedendo-se o papel activo às instituições comunitárias e aos Estados membros. Procurando contornar estes obstáculos, os recorrentes, numa tentativa muito digna, defenderam e ofereceram as linhas de reformulação do conceito de interesse individual quando estivesse em causa um acto lesivo do ambiente nos seguintes termos: “para considerar que um determinado recorrente é individualmente afectado por um acto da Comunidade que implique violação de obrigações comunitárias em matéria de ambiente, este deverá demonstrar que satisfaz as três condições seguintes: a) ter sofrido pessoalmente (ou ser susceptível de sofrer pessoalmente) um prejuízo efectivo ou potencial por causa do comportamento alegadamente ilegal da instituição comunitária em causa, por exemplo, uma violação dos seus direitos em matéria de ambiente ou uma ofensa dos seus interesses em matéria de ambiente, b) que o prejuízo sofrido possa ser imputado ao acto impugnado, c) que o prejuízo seja susceptível de ser reparado por um acórdão favorável”.
Não obstante a razoabilidade da argumentação acabada de transcrever, o TJ mostrou-se irredutível, e manteve a sua jurisprudência anterior. Com efeito, o interesse individual concebido pelas associações ambientais não se enquadra naqueloutro resultante do Acórdão Plaumann. Seria necessário que o acto individualizasse os particulares de forma análoga aos destinatários em razão nomeadamente de uma determinada situação fáctica que os diferenciasse relativamente a qualquer outros, e isso não sucede no caso em apreço. Por outro lado, e sendo propósito dos recorrentes promover o princípio da tutela jurisdicional efectiva, não deixa de ser curioso atentar no facto de que se as suas pretensões fossem atendidas pelo Tribunal, acabar-se-ia por dar um duro golpe no referido princípio, tal seria a quantidade de recursos interpostos por particulares que sentiam terem sido violados os seus direitos subjectivos ao ambiente.
Mais plausível no actual quadro legal se afigura a tese ensaiada pelo Advogado-Geral COSMOS, nos termos da qual seria possível afirmar-se a existência de interesse individual das pessoas que fossem afectadas em especial pelo acto danoso do ambiente, recorrendo para tal a um critério de proximidade geográfica daquelas em relação ao centro de impacto daquele. O facto de determinadas pessoas se inserirem num “círculo fechado” faria com que se pudesse afirmar a existência de uma situação de facto que as caracteriza relativamente a quaisquer outras, daí resultando a sua legitimidade para impugnar o acto nos termos do artigo 230.º, par. 4.º, do TCE. Tal concepção elimina, pelo menos em parte, o problema existente na anterior relativo ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, uma vez que o universo de particulares com uma pretensa legitimidade activa seria bastante mais estrito.
Bem vistas as coisas, como bem nota a Dr.ª Carla Amado Gomes, o grande préstimo do Acórdão Greenpeace acaba por ser o “de alertar para um vazio de protecção jurídica no âmbito comunitário no que toca a interesses colectivos, insusceptíveis de acolhimento, quer na letra, quer no espírito, do par. 4.º do artigo 230.º do TCE”. Partilhamos, pois, da opinião da autora de que, em situações deste teor, urge alargar a legitimidade activa a associações que se destinem a zelar por bens colectivos, como é o caso do ambiente. Esta será, pois, a melhor forma de alargar aos particulares a possibilidade de impugnarem actos atentatórios de um bem colectivo sem afectar – antes pelo contrário, promovendo – o referido princípio da tutela jurisdicional efectiva, centro de preocupações do Tribunal de Justiça.
Até lá, todavia, no concernente a todos os actos comunitários em relação aos quais não seja possível “desenhar” um círculo fechado nos moldes acima expostos, resta depositar as nossas esperanças – tal como fez o Legislador comunitário − na sensibilidade ecológica e, acima de tudo, no empenho em zelar pelo cumprimento do direito comunitário, dos designados recorrentes privilegiados, ou seja, os Estados-Membros, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. Com efeito, deverão assumir com especial acuidade as funções de principais fiscalizadores de intervenções comunitárias lesivas, ainda que em potência, do ambiente.

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